quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

70 anos de Auschwitz


"Aqueles que disseram que a poesia e a possibilidade de Deus cessaram com Auschwitz levantavam questões muito sérias, que marcaram intensamente o debate filosófico e teológico da segunda metade do século XX. E, de facto, dentro de um determinado quadro de compreensão foi o colapso. O que Etty intui fulgurantemente é que a experiência daquele inferno histórico exige a necessidade de uma nova gramática. «Vou ter de achar uma linguagem nova», escreveu ela. E achou.
Olhamos para ela em Westerbork e vemos a eleita do Senhor, passeando-se na solidão e na lama, escrevendo algumas das orações mais extraordinárias que um ser humano pode proferir, mas não na amplidão majestosa de um templo, antes no espaço putrescente da latrina comum, onde se refugiava de madrugada em busca de um instante de silêncio e de concentração. Vemos a enamorada de Deus esgotar-se em atenções aos deportados, curando, intercedendo, ela própria ferida por dores violentas, sempre à procura de uma janela donde se alcance um fragmento de céu, ou de uma tábua onde, por fim, possa sentar-se a ler umas frases de Rilke. Seguimo-la na leitura que faz do Evangelista Mateus, «o meu bom Mateus», nos comentários aos textos de Paulo e de Santo Agostinho como se de uma mestra experimentada nos caminhos do espírito se tratasse. Lemos «Gostaria muito de viver como os lírios do campo. Se as pessoas entendessem esta época, seriam capazes de aprender com ela a viver como os lírios do campo», e é difícil recordar que quem nos fala é aquela rapariga de Amesterdão que ali chegou há poucos meses.
No meio da tortura absoluta, é ela quem se preocupa com Deus. «Vou ajudar-te, Deus, a não me abandonares», escreve. Ou então: «Se eu estivesse encarcerada numa cela acanhada e uma nuvem passasse ao longo da minha janela gradeada, então eu iria trazer-te essa nuvem, meu Deus, se pelo menos tivesse forças para isso.» A sua oração é de agradecimento e de mil pequenas atenções: o perfume de uma flor, a musicalidade de uma palavra, a beleza indizível de um encontro: «Gostaria de falar sobre o que temos em comum, num tom de voz baixo e suave, mas ininterrupto e convincente. Dá-me palavras e a força.»
Claro que é também uma prece nocturna, povoada de dilacerantes interrogações: «Às vezes pergunto-me, num momento difícil como esta noite, quais são os planos que tens para mim, tu Deus.» Mas o traço mais forte é o de uma impressionante e inexplicável confiança: «Quando ontem, às duas da manhã, finalmente cheguei lá acima ao quarto da Dicky e me ajoelhei quase nua, no meio do quarto, totalmente deprimida, eu disse de repente: “Hoje, vendo bem, vivi coisas grandiosas e esta noite também, meu Deus, agradeço-te por eu poder suportar tudo e por haver poucas coisas que não ponhas no meu caminho.”»
A 30 de Novembro de 1943, a Cruz Vermelha comunicou a sua morte em Auschwitz."
(Padre José Tolentino Mendonça
Tirado d'aqui: clica)

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