domingo, 22 de janeiro de 2017

"DEI-ME CONTA DA SORTE QUE TENHO"





Maria Campos nasceu a 22 de Julho de 1997 no Centro Clínico de Lisboa do SAMS. “Passei a maior parte da minha infância na capital mas íamos muitas vezes à Ericeira porque temos uma casa lá. Tenho ótimas recordações”. 
A Maria é uma rapariga alta, de olhos grandes e escuros em forma de amêndoa. O cabelo castanho cai-lhe sobre os ombros formando suaves ondas que lhe dão um aspecto descontraído. Mostra-se sorridente e expressiva enquanto mistura o chantilly com o seu café longo num dos espaços mais frequentados do Saldanha: “ A Choupana”. Há vários anos que aquele estabelecimento é o seu local preferido para ir lanchar com os amigos. “É um sítio ótimo para conversar e tem imensa Nutella. Eu sou viciada em Nutella!”. 

 O olhar dela parece vaguear algures entre os croissants acabadinhos de fazer com um delicioso recheio de chocolate e a sua memória, à procura de algumas recordações de infância. “Definitivamente a parte que me lembro melhor da minha infância foi quando fiquei com diabetes aos 7 anos. Foi duro e claro que teve um lado positivo e outro negativo”. Sente que graças a esta doença cresceu mais depressa que o resto das pessoas da sua idade e ganhou uma maturidade prematura. “Com a Maria eu falo sobre tudo, sem filtros. E é estranho porque ela é mais nova do que eu. Mas a verdade é que desde sempre teve um nível de maturidade muito superior ao esperado para a idade dela. Abordamos os nossos problemas e tentamos sempre lidar com eles de uma maneira madura e adulta”, afirma a Inês, amiga e vizinha da Maria há cinco anos. 


Claro que a diabetes deixou nela algumas consequências menos positivas. “Sentia-me diferente das outras pessoas da minha idade. Durante quatro anos comia sempre o mesmo e quase não provava doces. As minhas amigas passavam a vida a comer gomas e chocolates e isso quando se tem sete anos custa muito”. Admite que muitas vezes ainda não consegue aceitar a diabetes e que lhe custa lidar com ela. Hoje em dia já pode comer todos os alimentos com moderação. Utiliza uma máquina infusora de insulina que lhe permite controlar melhor a doença (se for bem utilizada) do que as antigas canetas que tinha quando era pequena. Os olhos adquirem uma expressão mais dura, apesar de manter sempre o sorriso nos lábios, enquanto fala da diabetes. A sua saúde não se encontra no melhor estado no presente e para uma rapariga nova e aventureira como a Maria não é nada fácil. No entanto, deu-se conta com o passar do tempo que o sofrimento também sabe ensinar. “Dou muito mais valor à minha vida graças a isto. Tenho que lutar muito mais por mim mesma, comparativamente a outras pessoas porque é uma coisa da qual depende toda a minha vida”. 


A Maria vive num condomínio na cidade Lisboeta com os pais, a irmã Inês de 14 anos e o Afonso de 11 anos. Sempre se sentiu muito ligada ao pai devido às várias parecenças em termos de gostos e interesses. A Maria valoriza muito a família e esforça-se por melhorar ao longo dos anos a sua convivência em casa. “ As duas maiores qualidades da Maria são a sua enorme sensibilidade e disponibilidade para os outros”, afirma o pai. “Por vezes é conflituosa mas cada vez menos. Revela um sentido de família apuradíssimo, é muito amiga dos pais e dos irmãos, é muito organizada e dialoga muito sobre tudo”. 

Frequentou até ao 12º ano o Colégio Mira Rio no Restelo. “É só para raparigas mas gostei muito e adaptei-me bem”. Fez muitas amigas no colégio com as quais ainda mantém uma sólida amizade. “ A Maria é espectacular, dedica-se a cada pessoa pensando no que ela mais precisa.” conta a Madalena, amiga do Colégio. “ O que mais gosto de fazer com a Maria são festas de pijama. São momentos mesmo divertidos onde podemos conversar, cozinhar, ver filmes e divertirmo-nos!”.
 Cozinhar é o hobbie preferido da Maria desde os nove anos de idade. Começou por receitas simples como pãezinhos e bolachas de manteiga, passando depois para todo o tipo de cozinhados. “Adoro cozinhar italiano e indiano mas normalmente sou melhor nos doces. As minhas especialidades são brigadeiros e cheesecake de frutos silvestres”. Gosta de cozinhar principalmente porque considera a gastronomia como algo capaz de criar bons momentos e gerar sorrisos facilmente. 

Estudou bastante durante o secundário e aprendeu a importância de trabalhar com seriedade e dedicação. Conseguiu acabar com uma média de dezoito valores, o que lhe abria muitas portas. A sua meta na altura, era chegar a ser diplomata e pensou que uma boa maneira de alcançar esse objetivo seria entrando para o curso de Direito na Católica. “Direito é um curso mais abrangente do que Ciência Política e Relações Internacionais (CPRI). O meu pai fez o mesmo na altura e achava que era o melhor caminho para mim”. O ambiente da faculdade fascinou-a ao início. Gostou muito da organização da Católica e dos docentes que considerava muito competentes. Arranjou rapidamente alguns amigos devido à sua personalidade extrovertida. Sentia-se mais crescida e independente sendo universitária. Todavia, o curso não a deixava satisfeita. “ Andei a arrastar-me por direito durante seis meses. No geral estava muito desanimada porque sentia que aquele não era o meu caminho, que não era aquilo que eu devia estar a fazer”. A frustração da Maria não tardou em crescer e os pais decidiram levá-la a uma psicóloga para fazer um teste psicotécnico. Os resultados foram claros: CPRI ou Psicologia. “Decidi optar por CPRI na FCSH_ NOVA. Estou a gostar imenso, tem muito mais a ver comigo”. 


Quando decidiu desistir do curso de Direito, o segundo semestre mal tinha começado. A Maria deparou-se então com um dilema: ou terminava o primeiro ano da licenciatura ou desistia a meio. Acabou por decidir sair da Católica mas precisava de arranjar alguma coisa para fazer até às férias do verão. “ Sou aquele tipo de pessoa que não consegue ficar parada, não dá. É impossível! Por isso decidi que ia fazer voluntariado”. Há muitos anos que vai fazer companhia a idosos, principalmente no Convento da Encarnação, que ajuda em creches e distribui comida aos sem-abrigo. 

Fazer este tipo de voluntariado sempre lhe deu muita alegria porque a obrigava a esquecer-se de si mesma e dos seus problemas.
“ Para mim fazer voluntariado é dar sem esperar nada em troca. É algo que me faz 100% feliz”. 
A Maria ouviu falar da AIESEC que organiza estágios e programas de voluntariado para estudantes e fez uma pesquisa intensiva durante uma semana, enviando depois algumas candidaturas. A primeira resposta que recebeu foi de Biscke, na Hungria. Ficou delirante de alegria pois era o seu destino preferido e pensava que podia ser muito bom ajudar as pessoas num campo de refugiados. “O que eu mais gosto na Maria é o facto de se entregar às pessoas. Principalmente a quem precisa. E fâ-lo com o coração todo" afirma a Inês, vizinha da Maria. 
Em casa, a notícia da sua decisão foi bem recebida. “ Apoiei-a desde o primeiro momento por perceber que era isso que a Maria queria e por sentir que tem um dom e uma vocação natural para o que ia fazer. Alguma preocupação, derivada a ser a primeira vez que a Maria, insulinodependente, iria estar tanto tempo "fora da base" num país estranho”, conta o Pai.

Maria ajeita a camisa verde tropa com uma das mãos enquanto dá um sorvo no seu café com a outra. A sua disposição alegre às 10 horas da manhã chama a atenção e possui um entusiasmo contagiante. A Inês, que convive frequentemente com a Maria, confirma que há momentos que passa com a amiga em que sente uma mudança. “ Um dia fomos as duas a um restaurante comer. E no meio do jantar a Maria começou-me a falar sobre a sua maneira de estar na vida. Não consigo descrever o que se passou naquela noite mas posso dizer que esse momento abriu me muitas portas na minha vida. É daquelas raras pessoas que consegue trazer o que há de melhor em nós”.
Chegou o dia da partida. Foi a 16 de Maio de 2016 para Biscke mas só chegou ao campo três dias mais tarde devido à necessidade que tinha de tratar de uns assuntos em Budapeste. Quando chegou ao campo o primeiro impacto foi assustador. “ Nós vemos muitas coisas na televisão mas pisar aquele solo completamente diferente é mesmo alarmante”.
Qualquer pessoa que conheça bem a Maria responde prontamente que a sua maior qualidade é a coragem. “Lembro-me que quando tinha cerca de 2 anos, ao estar a pular em cima do sofá, a Maria desequilibrou-se, caiu e bateu com a cabeça na quina do degrau da lareira, fazendo um lanho de todo o tamanho e começando a deitar imenso sangue. Levamo-la a correr para o Hospital de Santa Maria, onde levou vários pontos. Durante todo o tempo, a Maria não chorou, nem quando a coseram. Desde cedo revelou-se uma menina muito corajosa e resiliente a todas as adversidades”, conta o Pai. 
Maria emociona-se um pouco ao relembrar aqueles meses no campo de refugiados e sorri serenamente enquanto reflete sobre o dia da chegada. 

“Não chorei. Mas fiz um esforço muito grande para não chorar. Achei que era a última coisa que eles precisavam que eu fizesse e a última coisa que eu precisava de fazer. Eu cheguei e já havia pessoas a chorar porque é que eu me ia juntar ao choro com a sorte que eu vi que tinha? Senti um vazio enorme porque me apercebi que me faltava qualquer coisa e o que acabou por acontecer é que eles me deram essa qualquer coisa que faltava”. 

No dia a seguir à sua chegada ao campo, começou a trabalhar. Havia muita coisa para fazer. Encontravam-se mais de 800 refugiados no campo num espaço que daria para, no máximo, caberem 450 pessoas. As entradas e saídas de refugiados eram constantes. A Maria e os outros voluntários, que eram apenas mais dois, tinham que ajudar toda a gente que chegava a arranjar um lugar para dormir. “Os húngaros não se importavam se eles ficassem a dormir na rua”.
Forneciam-lhes água, fraldas, shampoo para tomarem banho… Era frequente também terem que levar alguns refugiados ao posto médico. A expressão da Maria endurece ao lembrar-se da maneira como muita gente tratava as pessoas que viviam no campo. Não foram poucos os casos de agressões e injustiças que testemunhou. Muitas vezes negavam-se a tratar dos refugiados que eram levados ao posto médico. “ Levei uma miúda de seis anos porque tinha uma infecção no braço e fecharam-me a porta na cara. Outra vez levei um homem que tinha partido uma costela e mandaram-no embora com um paracetamol. Ficou uma semana com a costela partida e a morrer de dores. É muito triste. As pessoas não são tratadas como seres humanos”. 


A Maria ficou encarregada de organizar as atividades para as crianças. “It was amazing, she would create a very good vibe in the group. And she was a hard worker”, afirmou Friederike, uma voluntária franco-alemã que recentemente vive no Canadá.
Alegrava-a tornar aquelas crianças mais felizes e gostava muito de brincar com elas. Brincavam nos pré-fabricados, ensinava as meninas a pintar as unhas e a fazer penteados, aprendeu a fazer música com pedacinhos de relva e jogava futebol. Implementou também umas aulas de inglês, que permitiram às crianças comunicar um bocadinho melhor entre si. Raramente se ia abaixo quando aparecia um problema e lutava incansavelmente até o resolver. “She tries very hard to think of a solution and not give up even though it could mean some sacrifice”, afirma Charlene Ong, uma voluntária de Singapura.


“You. Beautiful” é o nome do blogue que a Maria criou durante a sua estadia na Hungria. Nele relatava o seu dia-a-dia e as histórias que mais a impactavam. O nome do blogue é bastante original e suscita alguma curiosidade. A Maria sorri com entusiasmo enquanto fala desta ideia, recordando o que se passara há uns meses atrás. No primeiro dia, decidiu fazer uma visita guiada ao campo. Enquanto caminhava deu-se conta que alguém espreitava por trás de uns arbustos. “ Sou muito curiosa e tive que ir ver quem era. Encontrei uma criança Síria de seis anos, a Sahma. Tinha uns olhos verdes enormes e o cabelo muito encaracolado e escuro”. A Maria acabou por conhecer a família da criança e ficou muito ligada a eles. “Comecei a querer aprender algumas palavras em árabe e perguntei à Sahma como é que se dizia ‘beautiful’ porque reparei que eles eram todos muito bonitos”. A partir daquele momento, sempre que se encontravam a Maria cumprimentava-a com um “You beautiful” e ela respondia “No, you beautiful” em árabe. “Foi por causa desta brincadeira que pus esse nome ao meu blogue. Talvez por ter sido a primeira criança que eu conheci e por ainda ter um significado especial para mim”. 


A Maria considera-se uma rapariga romântica e gosta muito de histórias de amor. “É das melhores companheiras para ver filmes românticos!”, afirma a sua amiga Maria. O seu romance preferido é “Cartas para Julieta” no entanto, considera “Amigos improváveis” o melhor de todos os filmes. “É um filme muito claro enquanto aos sentimentos, especialmente em relação à amizade. Mostra que na companhia de um bom amigo, as dificuldades e problemas tornam-se mais fáceis de enfrentar”.


No campo de refugiados, a Maria teve a oportunidade de testemunhar uma verdadeira história de amor, muito dura. Conheceu lá um casal de namorados que vinham do Nepal, com dezoito anos de idade. Fugiram do país porque as famílias deles não aceitavam que se casassem devido à diferença de castas. “Ele era extremamente rico, ela extremamente pobre. A mãe dele e o irmão batiam-lhe a ela muitas vezes, chamavam-lhe nomes e trancavam-na em casa para não poder ver o namorado”. Ele acabou por se revoltar com a situação e propôs-lhe que fugissem e começassem uma vida juntos em algum lado. Foram para a Índia e estiveram lá duas semanas. Conheceram um homem que lhes disse que os levava para a Alemanha em troca de algum dinheiro. E claro… Enganaram-nos. Foram levados para o Iraque e atirados para uma sala cheia de árabes. Contra a sua vontade, meteram-nos nuns camiões que os deixaram no meio do nada. Tiveram que andar a pé durante dois meses e chegaram à Hungria, ao campo de refugiados, onde estiveram durante cinco meses. Neste momento têm casa em Budapeste e ela já trabalha. Cortaram relações com as famílias mas nota-se que é algo que lhes custa muito. “Ela estava a estudar Gestão, ele engenheria. Roubaram-lhe todos os certificados, nem sequer têm um papel que comprove que são do Nepal”. Maria sentiu-se impressionada com a quantidade de pormenores que conseguem ter um com o outro mesmo sem dinheiro e a passar por uma situação tão difícil “ Confiaram -se a vida toda. Lutaram um pelo outro a níveis extremos”. 


O maior sonho da Maria Campos é trabalhar com refugiados. A experiência mostrou - lhe claramente o seu novo objetivo para o futuro. 



“ Quero criar uma ONG para refugiados, uma ONG melhor que todas as outras”. 



Maria Calderón 

1 comentário:

Tatiane disse...

Que coisa mais linda, que texto lindo! Que Maria linda! Quando te conheci em Lisboa, já percebi de imediato que você era diferente, você era uma menina de 14 anos, mas com um enorme coração. Quando 4 anos depois em sua visita ao Brasil, já era uma linda mulher e enquanto nos contava a experiência que teve com os refugiados, seus olhos brilhavam de felicidade, de ter feito o bem, o melhor que podia por tantas pessoas necessitadas.
Parabéns Maria, continue nesta trilha, neste caminho do bem, de coração aberto querendo sempre fazer o melhor para as pessoa. Isso te fortalecerá grandemente para qualquer obstáculo que vir a ter em sua vida!

Um beijo enorme e muitas saudades de todos aqui do Brasil!