sábado, 17 de maio de 2014

- Conta-me a história do homem que falava baixinho

Hoje de manhã foi a vista da janela do meu quarto. O vale, os pássaros e a copa das árvores, os pinheiros e os ruídos imersos num nevoeiro breve. Dei dois passos lentos para trás para que tudo encaixasse numa moldura de madeira velha. Aqui e ali havia uma árvore que se destacava como que a querer tocar o ceú. Respirei aquilo largos minutos, para que entrasse cá dentro e se entranhasse. Queria dar-lhes o meu tempo, saber contemplá-lo ao ponto de me constituirem.

- Conta-me a história do homem que falava baixinho. 
Havia um homem que pedia esmola no meu caminho para o trabalho. Mas este não é o homem que falava baixinho. Esta é outra história. Nesta história o homem não fala. No início pensava-o como penso uma das árvores ou um dos passarinhos: ele preenchia o cenário do percurso que faço todos os dias e do qual, me julguei senhora. Sei quantos minutos demoro a percorrê-lo, o que vejo, do que é que tenho que me desviar e com quem me cruzo. No início pensei que aquele caminho era meu. Lá ia eu e, às tantas, lá estava ele: o homem que pedia esmola no caminho.
Hoje não o vi e todo o dia imerso numa pergunta imersa num imenso nevoeiro: “onde estará?”. Afinal o homem não vive em mim. Agora tomei consciência que ele terá o seu caminho. Aquilo chocou-me, de certa forma e fez-me diferente. Que egoísmo. Agora vou no meu caminho e penso outras coisas: olho mais para o lado onde as pessoas vão no caminho delas, faz-me falta o homem que pedia esmola – será que encontrou o seu?
Agora mudo muitas vezes de percurso porque sou eu que escolho. Às vezes, escolho perder-me por aí. Cruzar-me noutros caminhos. Faz-me falta o homem que pedia esmola e queria dar-lhe o meu tempo como à copa das árvores. Ele tinha a tez escura e nunca soube se ri ou se chora – fazia um ar estrangeiro do qual eu desviava o meu olhar. Onde estará? O homem que pedia esmola é aquele sorriso estranho, nunca lhe vi os pés, será que tem pés? Nunca vi os troncos das árvores do alto da janela do meu quarto, mas elas não são só a copa.
- Conta-me a história do homem que falava baixinho. 
São vinte doentes pela manhã. Um entra-e-sai de gente carente que transporta os corpos e as almas. Diziam-me assim quando entrei para a faculdade: “o médico deve observar o doente desde que ele põe o primeiro pé dentro do consultório até que tira o último pois tudo nos fala da sua doença, com tudo comunica, de tudo podemos tirar informação”. Queria atirar as folhas, os registos, as análises pela janela para que se perdesse no vale, no meio das árvores e dos pinheiros, e assim olhar os doentes da raiz até à copa.
- Conta-me a história do homem que falava baixinho. 
A Dona Lurdes chora. Atrás do balcão onde atende os clientes famintos, chora. Quando lhe reclamo o porquê daquele ar triste, sem nunca deixar de fazer o que devia. No mesmo minuto em que chorou aqueceu um prato, tirou dois cafés, lavou umas malgas, só não cruzou mais o olhar comigo. Devia ter transposto o balcão e agarrá-la num abraço meigo. Devia ter saído do carro e olhado os pés do homem que pedia esmola. Eu queria ter beijado aqueles pés que por não terem destino certo, só têm o destino final que é o mesmo que o meu. Mas agora ele já não está. Seguiu o seu caminho. Agora a Dona Lurdes já não chora.
- Conta-me a história do homem que falava baixinho. 
Na verdade, pouco lhe interessava se os outros ouviam ou não. Era só isso: um homem que falava baixo. Pouco lhe interessava os papéis dos registos, das análises, a próxima consulta, mais ou menos colesterol... Conversa.


Entrei no jogo: calei-me e observei-o completamente, lentamente, sem sorrisos forçados ou olhares constrangedores. Durante uns segundos, falamos a mesma língua e fui muito feliz. Era só isto que te queria tanto contar... Que durante uns segundos, foi ele o médico e eu a doente moribunda, de bata e estetoscópio ao peito. E assim devia ser, todos os dias da minha vida.