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terça-feira, 21 de março de 2017

Escolho viver | Marta d'Orey

Eu sei, eu sei que este texto já surgiu há muito tempo, vi em muitos perfis do Facebook de muitos amigos, muitos desses muitos amigos conhecem a Marta e não só partilharam o texto, como uma experiência de alegria e de fé.
Tenho ouvido tantas -como se diz na minha terra- tolices  sobre a vida e sobretudo sobre a morte, nestes debates fracturantes, por isso apeteceu-me (re)publicar o testemunho da Marta, que pelos vistos, só com 19 anos sabe muito sobre vida e sobre a morte.

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Marta d’Orey, 19 anos, estudante de publicidade e marketing no IADE. Moro no Estoril com dois pais à maneira e três irmãos menos maus. Quanto a mim, sou a balança desequilibrada do meio. Gosto: de areia quente e gelados para refrescar; de mar salgado e de ondas com caminho para passear numa prancha; de pastéis de nata com canela, queijo da ilha, da serra, e do rio, massa pizza e massapão, e chocolate de todos os tamanhos e feitios; do clique do botão de disparo de uma máquina quando o dedo manda contar histórias com imagens; de livros com cheiro a papel e palavras rabiscadas na ponta de um guardanapo.
Esta é a minha história. Não toda, mas um capítulo de mim: Em janeiro de 2016 fui para Londres fazer um ano sabático. Pus a mochila às costas porque quis enchê-la com bocadinhos de chão pra lá da porta de casa, aprender a crescer sozinha e correr pelo mundo sem me desorientar na falta de GPS. Tinha 6 meses traçados em planos. Ia conhecer pessoas, trabalhar, fazer um curso aqui e ali, ir a museus onde a arte cresce dentro de quem a olha, passear em ruas desenhadas em tijolo, beber chá e comer scones fora d’horas, fugir do céu cinzento da cidade e escalar as montanhas verdes que trepam Reino Unido acima. E, em julho, fazer uma mala mais cheia de mim, e voar até Lisboa com a certeza de ter feito casa num planisfério maior.
E voltei. Com a mesma mala a transbordar em excesso de peso, com o estômago confortado em scones e panquecas, e a lista de contactos preenchida com nomes novos. Voltei, mas deixei dias por viver com o regresso antecipado. Começou por ser só uma gripe. Depois vestiu-se de pneumonia com passe direto para um internamento de duas semanas. Comecei a perceber que alguma coisa não estava bem quando dei por mim a subir um lanço de escadas para acabar a arfar como se tivesse corrido a maratona; quando apanhava táxis em vez de andar de transportes ou mesmo quando não ia a lado algum porque o sofá era um destino mais agradável. Qual quer que fosse o nome da praga tinha o apelido de parasita porque veio para ficar.
Assim, tomei as medidas entre o certo e o errado, e o bom senso fez as malas para Portugal. Quando cá cheguei fui imediatamente internada, sem perceber bem o que se passava, e, verdade seja dita, pouco confiante de prolongar a estada para lá da primeira semana. Mas possibilidades de diagnóstico estavam contra mim e o leque de exames a fazer era infindável. Foram dias a especular suspeitas para deixar de as ter quando os resultados tornavam claro que o caminho era no sentido oposto.
E a primeira semana passou, e depois veio a segunda, a terceira e a quarta. E o nome não era mais do que “o problema”. Vários médicos o viram, vários opinaram, e poucos acertaram. Depois vinte e cinco dias riscados no calendário, saí pelas portas do hospital para encontrar uma vida totalmente diferente da que tinha deixado cá fora. Sem diagnóstico e qualquer tipo de certeza.
Era verão, mas eu tinha indicações apertadas que não me davam férias. Não podia ir à praia sozinha, mergulhar era a cuidado, o surf estava a aguardar vez, e os passeios tinham início num sinal de STOP. Cansava-me rápido, sim, mas em que parte é que o cansaço deixava de ser resposta natural do comum mortal ao estímulo físico e passava a ser a doença a falar? Onde não podia ir eu sabia, mas afinal qual podia ser o caminho? Ficar parada não era resposta.
Como nunca fui muito dada a máscaras, não me quis vestir de doença, e, por isso, brinquei aos “elásticos”. Com inteligência ora para não pisar a linha ora para não me esconder na sombra, aprendi a ser flexível quando readaptei as prioridades. Respondi à vida com jeito de cintura, e um “não” vinha sempre acompanhado de um ponto final, parágrafo, travessão. Se não podia fazer surf, podia apanhar ondas com o olhar; se não podia andar sozinha, podia estar rodeada de amigos; se não podia sair à noite, podia comer gelados ao fim do dia. Passou a ser um contrato com negociação inerente. Costumo dizer que tenho uma costela marroquina.
Entretanto, o diagnóstico continuava anónimo e, na ausência de respostas, fiz mais perguntas. Encontrei um médico que me soube falar com nexo, e me escreveu um nome que explicava a minha incompetência no que toca ao simples ato de respirar. Bronquiolite obliterante pós-infecciosa. Uma sequela da pneumonia que veio a reboque da Gripe A. Uma doença rara, difícil de apanhar em falso. Uma doença sem tratamento específico, porque os casos registados foram poucos e as estatísticas quase nulas. Uma doença que me reduziu a função respiratória a números ridículos (menos de 15%), e sugou o oxigénio que me alimentava os pulmões e os deixou rendidos ao esforço insuficiente da súplica ignorada. Uma doença que tornou o imprevisível visível num curto-circuito estremecido na escuridão apalpada às cegas, e trocou o certo garantido pelo incerto adquirido. Uma doença que me trocou as voltas e os pesos, no dia em que arrumou os livros na prateleira para dar lugar à botija de oxigênio embalada na mochila presa às costas. Uma doença que me apresentou a morte pelo nome sem me dar tempo para o “passou-bem” quando dispensei o “prazer em vê-la”. Uma doença que fez com que tivessem de me reanimar quando abrandou o ritmo do coração que me bate no peito.
A primeira resposta foi um transplante pulmonar, indicado para doentes com funções respiratórias tão comprometidas como a minha. A segunda, para fugir à primeira que não é de todo tão agradável como parece, foi um tratamento que, no meu caso, apesar de viável, não tinha qualquer expectativa de resultado fosse ele positivo ou negativo.
E, por isso, estou às cegas. À espera de dar tempo à semente para se fazer árvore, a deixar que os dias se vivam à vez e a vivê-los como se fossem os primeiros. Mas as minhas pegadas marcam-se firmes na areia deserta. O terreno é incerto, mas o caminho é feito com pés e cabeça.
Escolho escolher. Passei a saber onde posso ser agente, e onde tenho voz passiva. Aprendi que pouca é a opção que temos, para além da resposta que damos às questões que nos põem. Não decidimos se cá estamos, mas sim, como estamos. E se assim o é, eu escolho estar a 1000%. Escolho andar no hospital como se passeasse na serra de Sintra, e abrir a porta do quarto para quem se quiser juntar à festa do pijama. Escolho que a relação com os enfermeiros não tenha direito a título e se espelhe no ecrã de uma selfie enquadrada entre a palhaçada e o riso fácil. Escolho chamar “casa” às paredes brancas e “família” ao pessoal vestido de azul. Escolho brindar o pôr do Sol com amigos e conversas triviais, e abraçar a noite sem todas as certezas do mundo, mas com a sede nunca hidratada de beber mais amanhãs.
Porque tenho um metro e oitenta e sou maior do que isto; porque sou a Marta d’Orey, tenho 19 anos, sou estudante, sou a balança desequilibrada do meio, gosto do mar e de pastéis de nata, e acordo de manhã irritantemente bem-disposta para gritar ao mundo um segredo ao ouvido.... Sabem uma coisa? A vida é extraordinariamente maravilhosa. E sabem outra coisa? Não dura para sempre. E sabem que mais? É quando concebemos o fim que encontramos o nosso início.

segunda-feira, 13 de março de 2017

Centenário de Fátima 1917-2017

Daqui 2 meses vamos festejar a alegria, a grande Graça, que Portugal recebeu em 1917: O centenário das Aparições de Fátima.
Sabendo da importância de Fátima para Portugal e para o Mundo, o #BlogHEart vai tentar acompanhar com artigos, divulgações, iniciativas....



O #Desafio para hoje é o Estandartes de Fátima - porque não? AQUI



segunda-feira, 6 de março de 2017

Chema Postigo


Conhecíamos a família das “1.300 bolachas por mês” pelas notícias da imprensa mundial – e para nós só isso bastava para os chamarmos de heróis.
Rosa Pich e Josemaria (Chema) Postigo, casal de Barcelona, 18 filhos, muitos deles nascidos com uma cardiopatia congénita, 2 tinham morrido pequenos, no espaço de 4 meses, e a filha mais velha morreu inesperadamente em 2012, com 22 anos, na sequência de uma intervenção médica de rotina.
No Verão passado tivemos o privilégio de fazer umas férias formativas com famílias de vários países, e a Rosa e o Chema foram os nossos anfitriões – e vizinhos do lado. Já tinha passado uns dias, em pequena, naquele mesmo lugar, e tinha sido inesquecível. Desta vez, foram dias de sonho. A Rosa e o Chema especializaram-se em Orientação Familiar, seguindo os passos de gigante dados nesta área pelo pai de Rosa, Rafael Pich.
Mas a verdadeira orientação familiar que nos deram veio do dia-a-dia que partilharam connosco – a Rosa, sempre muito bonita, com uma alegria contagiante – as gargalhadas únicas - e uma capacidade incrível de tornar tudo mais simples e mais fácil. O Chema, que sempre parecia ter todo o tempo do mundo para nós. A voz calma, a serenidade, o sorriso pronto. As atividades tão bem planeadas – com logísticas complexas, com muitas famílias numerosas.
À porta da sua casa, no passeio, carrinhos, cadeiras de papa, camas e berços, para quem precisasse durante aqueles dias – bastava passar por lá e levar, apenas deixando um papel com a indicação de quem tinha levado o quê. Os filhos tão bem educados e tão felizes – se nos vissem a chegar das compras, prontamente ajudavam a trazer os sacos e a arrumar as coisas; nas nossas formações eram quem fazia o babysitting – sem que fosse preciso pedir, tudo funcionava porque os filhos antecipavam-se às necessidades, e isto vinha do exemplo da lógica amor-serviço destes Pais que, com uma sobrenaturalidade discreta, mas vivida, traziam o extraordinário ao quotidiano, amando a Vida e a Família incondicionalmente.
Estamos muito gratos à Virgem de Torreciudad por este encontro maravilhoso que mudou para sempre as nossas vidas – chegámos a Portugal absolutamente renovados.
Ficou a amizade, e mantivemos o contacto, trocando mails com frequência. A última vez que estivemos juntos foi na conferência dada pela Rosa e pelo Chema no colégio S. João de Brito para apresentar o livro de Rosa Como ser feliz com 1,2,3…filhos?.
Nestas duas semanas tudo aconteceu muito depressa e, apesar da incredulidade e da comoção inevitável, consola-nos saber que o Chema a partir de hoje está no Céu, reunido com 3 dos seus filhos. Nada do que for dito ou escrito será suficiente para descrever o legado desta Família.
Dizia-nos a Rosa que hoje em dia formamo-nos para tudo, tiramos a licenciatura, o mestrado, o doutoramento nas mais variadas áreas, para fazer mais e melhor. Assim também deve ser naquilo que é mais importante na vida: a Família. Podemos aprender como educar melhor os nossos filhos, e ainda mais importante, como amar mais o nosso marido/mulher. Porque este amor é a pedra angular da Família, e a Rosa e o Chema serão sempre um modelo do verdadeiro amor conjugal, que tudo crê, tudo espera, tudo suporta – e tudo alcança, porque o Céu é o limite!

Catarina e Miguel Nicolau Campos

6 de Março de 2017


Como ser Feliz | Rosa e Chema Postigo

Para comprar o livro: AQUI
Quando li o livro "como ser feliz com 1, 2, 3... filhos?" delicie-me com esta família de 18 filhos! Fiquei impressionada com tamanha generosidade, e, rapidamente fui conquistada pelos Postigo's.
De facto são imagem de uma batalha, uma contradição ao egoísmo, uma esperança no mundo actual.
Hoje soubemos a que o Chema - o pai - partiu, depois de uma rápida e fulminante doença, e, esta família, mais uma vez, voltou a ser um exemplo, de fé, de crença de entrega.
Obrigada!






quinta-feira, 2 de março de 2017

quarta-feira, 1 de março de 2017

a ambição é o Céu



Depois desta pausa - no blog -  fiquei mas velha.
20/2 com 30+1: Não são só números, são dias... anos.

Quando faço anos gosto de pensar:
Enquanto criança onde é que eu me imaginava aos 31's? 
Para a littel Dita o que seria o seu futuro? 
Onde estaria agora?

Não estou a gerir as minhas quintas com cavalos, entretanto até o meu hamster já morreu, não casei com o príncipe nem com nenhum herdeiro da família Onassis, mesmo assim ainda continuo a gostar de homens com óculos extravagantes e chapéus de Panamá. Não sou médica, não tenho filhos, nem o veleiro para dar a volta ao mundo quando me reformar, não fui viver 1 ano para África - só lá estive 3 Verões, conta? - Não tenho a minha casa ao pé do mar, nem sobrevivo da minha horta biológica, não fui presidente da câmara nas Flores, nem faço mergulho depois do pequeno almoço.... 

Mas, o facto de não ser aquilo que pensava ser, não invalida o ser feliz: estou realizada com o que construí nestes últimos dias... e anos.
Gosto deste exercício, porque faz-me pensar, faz-me pensar que nós em crianças não temos noção do futuro, misturamos a criatividade com a imaginação, não lembramos da crise, da falta de dinheiro, do IVA, do desemprego ou dos próprios limites da liberdade.... como é bom não ter noção de tudo isso.

Tenho imenso orgulho no que construí nestes últimos anos, não fiz aquilo que imaginava fazer, mas fiz coisas espectaculares, incríveis, que foram pequenas, simples, do quotidiano... e sobretudo sou feliz ao lado de gente muito boa. 
Dou graças, graças a Deus por tudo, cada dia, cada segundo, por não ser prefeito, por ter que lutar e pelas dificuldades. Mas agora peço-Lhe um coração grande, um coração feliz, um coração que saiba amar, um coração de criança, sem limites, para nunca desistir dos sonhos, mesmo os que são mais irreais como abrir a minha própria gráfica.

Como diria a minha grande amiga, que imigrou ontem: "Olhos na meta!"

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Por mais escura que seja a noite…amanhã é outro dia

Uma história de esperança


Fundação Calouste Gulbenkian conta história de jovem açoriano em livro
"A história de Josselino “é simples”, refere Rui Drumond, do Centro de inclusão juvenil da Cáritas da ilha Terceira, pois é a história “infelizmente de tantos jovens a que a escola não soube ser a resposta e as dificuldades familiares e pessoais arrastou para o mundo do trabalho sem qualificações”.
“Esta é de facto uma história bonita porque acaba bem e o Josselino conseguiu depois de muitas dificuldades agarrar esta oportunidade com um percurso ascendente”, refere o responsável da Cáritas."

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Silêncio de Martin Scorsese (V)

Ontem fui ver o - mais que esperado - Silêncio. Acho que ainda estou a digerir o filme, de facto é impossível ficar indiferente, de facto é impossível não ficar incomodado, de facto é impossível não sentir nada em relação ao filme, talvez isso explique os tantos artigos de opinião.... 
Ontem fui ver o filme, mas hoje ainda estou a processar...            
~~~
 /// Loading na minha cabeça \\\




Mas sim, agora sim, posso escrever as minhas própria palavras, as minhas próprias conclusões. Só preciso de parar o Loading e de ter tempo.
Podem aguardar! Não será surpreendente, não será diferente daquilo que já lemos, que já sentimos, mas será a minha visão...

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Silêncio de Martin Scorsese (IV)

Parece que hoje vou finalmente ver o filme de Martin Scorsese, o Silêncio, depois de muito barulho. Também foi hoje. que o Padre Gonçalo Portocarrero escreveu a sua crónica acerca do filme, e, como sempre, brilhante, histórico, incisivo, directo, um pouco ao estilo tomista, o Padre Gonçalo faz um retrato do que é essencial e do que é verdadeiramente fé (indissolúvel do Amor de Deus).




Os sete pecados capitais do romance de Shusaku Endo e do filme de Martin Scorcese, segundo a doutrina e a moral católicas, pecados que decorrem de contradições com princípios básicos da fé cristã.
O filme ‘Silêncio’ tem certamente muitas qualidades cinematográficas, mas também tem, pelo menos, sete pecados capitais. Não os clássicos, mas os que decorrem das contradições entre o seu argumento e alguns princípios básicos da fé cristã e da moral católica.
O argumento do filme, inspirado no homónimo romance de Shusaku Endo, poder-se-ia resumir numa frase: por caridade, seria justificável a apostasia, ou seja, a rejeição da fé. Nalguns casos, o martírio, que é a vitória da fé, deveria ceder ante o imperativo da caridade: não seria virtuosa a morte que arrastasse consigo a vida de seres inocentes. Num contexto de uma eventual perseguição, poderia ser até meritória a apostasia, como expressão de um amor desinteressado, porque o mártir poderia ser, em última análise, um orgulhoso que, para garantir a sua própria glória, permitiria a tortura e morte de fiéis inocentes. Pelo contrário, o cristão autêntico seria o que, por amor aos outros – não é a caridade a principal virtude cristã?! – se disporia até a renegar a sua fé, mesmo sabendo que, desse modo, pecaria gravemente e, portanto, comprometeria a sua salvação.

Este é, grosso modo, o argumento de ‘Silêncio’, o romance de Shasaku Endo que Martin Scorcese realizou como filme. Mas, esta tese é aceitável segundo os ensinamentos da fé cristã e da moral católica? Não parece, à conta dos sete pecados capitais deste ensurdecedor ‘Silêncio …
1. O primeiro pecado capital de ‘Silêncio’ é, precisamente, a contradição que estabelece entre a fé e a caridade cristã, insinuando que, nalgum caso, pudesse ser necessário negar a fé para salvaguardar a caridade, ou seja, apostatar por amor. Uma tal suposição contraria a noção de martírio cristão, que não é, como se pretende fazer crer, um acto de orgulhosa afirmação pessoal, mas um acto supremo de caridade cristã: “ninguém tem maior amor do que quem dá a vida pelos seus amigos” (Jo 15, 13). São Paulo ensina que a morte mais cruel, sofrida pela fé, mas sem amor, não só não é martírio como não teria, em termos cristãos, nenhum valor: “ainda que eu (…) entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, de nada me aproveita” (1Cor 13, 3). O mártir não antepõe a sua salvação e glória eterna ao bem dos outros mas, imitando Cristo, oferece a sua vida pelos seus irmãos e pelo bem das suas almas. Mesmo sendo, em termos humanos, inglória a morte do mártir, a Igreja sempre considerou que o martírio nunca é um acto egoísta, nem em vão, porque o sangue dos mártires é sementeira de novos cristãos.

Note-se que, antes de Cristo, o povo judeu já tinha esta convicção: a mãe dos sete irmãos macabeus exorta-os a permanecerem fiéis até à morte, pois seria desonrosa a sua apostasia, não só para eles, mas também para a sua família e para todo o povo de Deus. Quando as autoridades pedem à piedosa mãe que, pelo menos, evite a morte do último filho que lhe resta, aquela santa mãe que, “cheia de nobres sentimentos, juntava uma coragem varonil à ternura de mulher” (2Mac 7, 21), anima-o a permanecer fiel até à morte: “Não temas, portanto, este carrasco, mas sê digno dos teus irmãos e aceita a morte, para que, no dia da misericórdia, eu te encontre no meio deles” (2Mac 7, 29). A sua cedência seria sempre, mesmo naquele contexto tão doloroso, uma ignominiosa traição e, ao invés, a sua fidelidade até à morte, a melhor expressão da sua caridade, também para com os seus irmãos e a sua mãe, que por isso o anima a abraçar o martírio.

2. O segundo pecado capital de ‘Silêncio’ é a suposição de que um acto, em si mesmo mau, poderia não sê-lo num determinado contexto. Ou seja, mentir ou apostatar seriam justificáveis em legítima defesa, ante uma agressão injusta e brutal. É nesta contradição que radica o relativismo do argumento porque, segundo a moral cristã, uma acção intrinsecamente má não pode deixar de o ser, mesmo se for um meio para alcançar um bem maior. Não se pode matar um ser humano inocente, nem apostatar, mesmo que seja para salvar outras vidas.

3. O terceiro pecado capital radica na suposta independência entre os actos de um sujeito e a sua fé, ou seja, um crente poderia externamente apostatar, sem contudo negar a fé no seu interior. Mas não se pode restringir a afirmação da fé a uma mera atitude interior, porque é pelas obras que se conhece a verdadeira fé.

A cena final deste filme sugere, com efeito, que a apostasia poderia, na realidade, não ter afectado a verdadeira fé do apóstata, porque este, embora exteriormente tivesse publicamente repudiado a sua condição cristã, no seu íntimo continuaria a ser católico, mesmo vivendo em aberta contradição com a sua fé. Mas, seria cristã uma tal contradição entre as obras exteriores e as convicções íntimas?!

É óbvio que essa duplicidade, se consciente e voluntária, não é compatível com a fé cristã que, mais do que acreditar numas determinadas verdades, exige uma vivência de acordo com esses princípios, que o são precisamente porque têm correspondência com a prática. Portanto, não é católico quem diz que o é, mas quem procura viver como tal. Em caso de contradição entre a fé e as obras, é pelas obras que se há-de conhecer a fé e não o contrário: “de que aproveita, irmãos, que alguém diga que tem fé, se não tiver obras de fé? Acaso essa fé poderá salvá-lo? (…). Assim também a fé: se ela não tiver obras, está completamente morta. Mais ainda: poderá alguém alegar sensatamente: Tu tens a fé, e eu tenho as obras, mostra-me então a tua fé sem obras, que eu, pelas minhas obras, te mostrarei a minha fé. Tu crês que há um só Deus? Fazes bem. Também o crêem os demónios, mas enchem-se de terror. (…) Assim como o corpo sem alma está morto, assim também a fé sem obras está morta” (Tg 2, 14. 18-19. 26).

4. O quarto pecado capital tem que ver com o silêncio propriamente dito, que serve de título ao romance e ao filme correspondente. Na realidade, é quase blasfema a afirmação de que Deus se mantém silencioso quando os padres Ferreira e Rodrigues se enfrentam com um doloroso dilema, porque eles sabem muito bem qual a resposta de Deus a essa sua dúvida. Com efeito, Deus fala pela Sagrada Escritura, Deus fala pela sagrada tradição, Deus fala pelo magistério da sua Igreja, Deus fala pela oração, Deus fala pela obediência do religioso ao seu superior, Deus fala ainda pela voz da recta consciência. Mais do que silêncio de Deus, haveria que falar da surdez dos homens que não querem ouvir a sua voz, ou da sua fraqueza para cumprirem os seus mandatos.

Imputar, a um hipotético silêncio divino, a culpa pela apostasia do missionário é tão absurdo como seria despropositado que um assassino se desculpasse do crime que realizou, dizendo que não ouviu nenhuma voz do alto proibindo-o de matar …

5. O quinto pecado capital de ‘Silêncio’ é a sua tentativa de apresentar a religião católica como um produto ocidental que se opõe à tradição e cultura nipónica, como se os missionários, com o pretexto de evangelizar, no fundo fossem colonizadores, ou agentes de um certo imperialismo cultural. Neste sentido, a reacção das autoridades japonesas seria, em primeiro lugar, patriótica e, neste sentido, pelo menos compreensível, se não mesmo louvável.

Ora o Cristianismo não pertence, em regime de exclusividade, a nenhuma cultura ou tradição mas, como verdade que é, faz parte do património universal da humanidade. Seria absurdo considerar que a evangelização da Europa foi, na realidade, uma acção colonialista oriental, só porque os cultos pagãos europeus foram substituídos pela crença judaico-cristã, de origem asiática. Toda a verdade, nomeadamente a fé cristã, não é de nenhum povo em particular mas, como a ciência, é património de toda a humanidade: é por isso que a Igreja é católica, ou seja, universal.

Em cada país, a fé cristã adapta-se perfeitamente aos usos e costumes locais, desde que sejam moralmente lícitos. Diga-se de passagem que nesse processo, nem sempre fácil, de inculturação da fé, os jesuítas realizaram um trabalho admirável, nomeadamente no Extremo Oriente.

6. O sexto pecado capital de ‘Silêncio’ é o que decorre da metodologia adoptada para o tratamento cinematográfico, mesmo que ficcionado, de uma determinada realidade histórica. Com efeito, a dificílima evangelização do Japão é uma das páginas mais heroicas da história da Igreja Católica e da Companhia de Jesus: ao referi-la pela perspectiva da apostasia de uns poucos, ofende-se a memória dos muitos que foram verdadeiros heróis. A apostasia de alguns foi a excepção à regra do martírio de tantos: recordem-se, por exemplo, São Paulo Miki e os seus companheiros mártires.

É verdade que o Padre Cristóvão Ferreira apostatou e não foi o único, mas contar a evangelização do Japão por esse prisma é tão incongruente como seria injusto expor a acção heroica dos 40 conjurados que restauraram a independência nacional, em 1640, pelo prisma do traidor Miguel de Vasconcelos …

7. O sétimo pecado capital de ‘Silêncio’ é confundir apostasia com apóstatas, transferindo o perdão e compreensão de que os apóstatas, como quaisquer outros pecadores, carecem, para a própria apostasia, que é deste jeito moralmente justificada. Ora a Igreja sempre ensinou a amar os pecadores e a detestar o pecado, de modo semelhante a como o médico luta contra a doença, mas acolhe e protege os doentes. A tolerância é para o pecador, não para o pecado e, mesmo aquele, só pode ser perdoado e acolhido de novo se verdadeiramente arrependido.

A Igreja sempre venerou os mártires, mas nunca os confundiu com os apóstatas, que também nunca excluiu, muito embora requeresse, para o seu perdão e readmissão na comunhão eclesial, o seu arrependimento e penitência, que devia ser pública quando a apostasia também o era. Assim aconteceu com os primeiros cristãos que fraquejaram ante as perseguições romanas, os lapsi, sobre os quais S. Cipriano de Cartago escreveu um tratado.

Ao contrário dos muçulmanos, que ainda hoje aplicam a pena capital aos renegados, a Igreja Católica, sem nunca legitimar a apostasia, sempre perdoou e acolheu de novo os apóstatas arrependidos. Simão Pedro negou por três vezes o Mestre, chorou amargamente o seu pecado, de que o Senhor o perdoou e depois foi mártir e o primeiro papa da Igreja Católica! Porque Deus é amor, perdoa sempre o pecador arrependido, não uma vez, nem três ou sete, mas, como em ‘Silêncio’ se mostra de forma tão comovente, setenta vezes sete! (cf. Mt 18, 22).

São Paulo Miki

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Morte assistida (?)

José Ribeiro e Castro, comentando as notícias, escreveu no seu FB um testemunho sobre a "morte assistida", ele que acompanhou por perto a incrível história do seu irmão Fernando, doente oncológico, fundador da Associação das Famílias numerosas e mentor do dia Nacional do Irmão, a história de um homem generoso que, pelo visto, teve uma "morte assistida":

Isto da "morte assistida" é uma hipocrisia e uma mentira pegada. Uma fraude deliberada de linguagem.
Morte assistida é o que se passa todos os dias nos hospitais, com os doentes que são cuidados clinicamente até ao último momento. Morte assistida é o que se passa naquelas famílias que assistem e acompanham, com carinho, os seus familiares nos últimos dias e momentos de vida. O meu irmão morreu, há pouco, assistido, no hospital. A minha avó paterna morreu, assistida, em casa, quando eu era criança. É a primeira morte de que me lembro. O meu avô materno morreu, assistido, no hospital. O meu avô paterno morreu, assistido e acarinhado, em casa de meus pais. A minha mãe, a minha avó materna e o meu pai morreram todos subitamente, pelo que não foram assistidos. O médico e a família apenas puderam constatar os óbitos.
Não se pode despenalizar a morte assistida, porque a morte assistida não está penalizada. A assistência na morte é um dever de todos os próximos dos moribundos: médicos, familiares, outros profissionais de saúde, cuidadores em geral. Não só é legal, como é devida.
Este debate não é sobre morte assistida. Este debate é sobre eutanásia, isto é, sobre morte provocada.
Também eu, se não morrer de morte súbita, ou violenta, ou de acidente, terei certamente uma morte assistida: ou em estabelecimento de saúde ou social, ou em minha casa com a família. Não temos que nos preocupar com isso. Já é assim.
José Ribeiro e Castro




segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Silêncio de Martin Scorsese (III)

Ainda não vi o filme (parece que chegará no próximo fim-de-semana ao Centro Cultural de Angra do Heroísmo). Depois destes opinion maker AQUI e AQUI não queria deixar o artigo do habitué César das Neves.

De facto foi um silêncio bem barulhento:
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Martin Scorsese fez um filme muito barulhento chamado Silêncio. Adaptação do romance homónimo de Shusaku Endo (1966), relata a história maravilhosa dos mártires Ichizo, Mokichi, padre Garupe e uma multidão de missionários e fiéis do Japão em meados do século XVII, numa das mais impiedosas e esmagadoras perseguições da história da Igreja. Scorsese, que fez Jesus descer da cruz em A Última Tentação de Cristo (1988), é fascinado com o fenómeno da apostasia e centra a atenção no drama de dois padres que abandonaram a fé sob tortura. O filme constitui uma bela obra cinematográfica e uma profunda reflexão sobre as questões da fé, perseguição religiosa e apostasia, mas tem três problemas principais.
O primeiro é histórico. O protagonista, padre português Sebastião Rodrigues, é fictício, mas o enredo baseia-se na vida verdadeira de Cristóvão Ferreira, superior interino da província japonesa da Companhia de Jesus que apostatou sob tortura a 18 de Outubro de 1633. A sua renúncia gerou na época grande consternação em toda a Igreja e várias missões para o converter, como a relatada no filme. A fiabilidade da descrição é grande, mas omite que existiram "três tentativas específicas de contactar Ferreira e persuadi-lo a renunciar à sua apostasia" (Cieslik, Hubert [1973] "The Case of Christovão Ferreira". Monumenta Nipponica vol. 29, n.º 1, p. 44): o padre Marcello Mastrilli S.J. martirizado a 17 de Outubro de 1637, o japonês Pedro Kibe S.J., martirizado em Julho de 1639, e o padre Antonio Rubino S.J. e quatro companheiros, martirizados em Março de 1643. Apenas num segundo grupo de dez companheiros de Rubino, chegados ao Japão em 1643 e presos ao desembarque, terão existido abjurações. Também teria sido digno mencionar que o próprio Ferreira renunciou à apostasia e morreu mártir em 1650, segundo relatos que a crítica histórica considera aceitáveis (op. cit. p. 46-48).

O segundo problema é moral. O filme baseia-se num falso dilema ético, a torturante escolha do padre entre abandonar a fé ou entregar os seus fiéis à tortura. O sacerdote recomenda repetidamente a apostasia para os crentes se livrarem do suplício e a voz do próprio Jesus apoia a falácia dos perseguidores e sugere a renúncia. A conclusão parece ser que os apóstatas são-no por generosidade e os mártires insensíveis e fanáticos. Mas a verdadeira escolha, como a vêem os crentes, coloca-se entre o tormento da fossa e o horror ainda maior de uma vida sem fé, sem esperança, sem Cristo. Foi por fervorosa dedicação à salvação dos cristãos japoneses que os mártires sofreram, e os apóstatas cederam, não por amor ao próximo, mas por fraqueza. Deus, na sua infinita misericórdia, perdoa sempre que lhe pedimos, como o filme comoventemente manifesta, mas não confunde o bem com o mal.

O terceiro problema é de consistência lógica. O tema do filme é supostamente o silêncio de Deus; mas Ele não só aparece ao padre Rodrigues, mas fala explicitamente mais de uma vez. Além disso, é estranho que o protagonista, recriminando tantas vezes o Senhor por não lhe responder, descure as formas habituais de Deus falar aos seus fiéis: a Bíblia, palavra de Deus, praticamente ausente do filme, e o testemunho dos irmãos, que neste caso clama com toda a força a presença divina.

No entanto, os inquisidores fazem um diagnóstico correcto da fraqueza do padre Rodrigues, o seu orgulho. A fé humilde dos camponeses japoneses vence a fúria dos perseguidores de uma forma que a arrogância intelectual do sacerdote não é capaz. Rodrigues sente que o sofrimento lhe dá direito a uma revelação particular, sem entender que esse mesmo sofrimento, unido à paixão de Cristo, constitui a maior revelação divina.

Ao contrário do que o inquisidor japonês afirma, a fé não foi derrotada pelo solo hostil do Japão. O argumento de Ferreira a favor dessa tese baseia-se num trocadilho anacrónico, que só funciona em inglês, entre filho (son) e sol (sun). Cristo não precisa de tradução e a fé nipónica, semeada por São Francisco Xavier, resistiu às mais terríveis perseguições e permanece hoje bem presente. O filme explica porquê.

O verdadeiro problema não é o silêncio de Deus, mas o ruído que reina no nosso interior. O cardeal Robert Sarah acaba de publicar um livro ainda não traduzido sobre o tema: A Força do Silêncio contra a Ditadura do Barulho (Fayard, Paris, Out/2016). Como prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, o prelado guineense pode ser considerado o responsável máximo pela oração de toda a Igreja. Cumprindo a sua missão, este volume constitui uma belíssima terapia para os males da sociedade contemporânea: "O silêncio não é uma ausência. Pelo contrário, ele é a manifestação de uma presença, a mais intensa de todas as presenças. O descrédito criado sobre o silêncio na sociedade moderna é o sintoma de uma doença grave e inquietante. As verdadeiras questões da vida colocam-se no silêncio." (p. 36).


João Cesár das Neves, 

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Silêncio de Martin Scorsese (II)

Continuo sem ver o filme - como escrevi aqui - contudo, até ao dia, acompanho pelos comentários e pelas críticas, não feitas por mim, mas elaboradas por aqueles que tenho em consideração. Admiro a consciência história e recta de José Miguel Pinto Santos, penso que o economista tocou em boas questões - ou melhor na boa questão: a veracidade dos factos -  a diferença entre a estória e a história.
/Cada vez que conheço mais a verdadeira história, mais fé tenho\




Aqui fica o artigo que vale a pena ler:

"O problema fundamental da nossa era não é económico nem financeiro. Tão pouco é social ou político. Nem sequer é o populismo ou a proliferação de leis e regulamentos que coartam a liberdade e iniciativa dos indivíduos. A grande crise da Europa e da sua civilização é filosófica. Mas não é principalmente uma crise nem metafísica nem sequer ética. A nossa grande falha civilizacional hoje é epistemológica. Já não se acredita que a realidade seja percetível objetivamente. Vivemos numa época em que todos somos Pilatos, prontos a ripostar “o que é a verdade?” e, ato continuo, virar-Lhe as costas com mais desplante e cinismo que o do verdadeiro Pôncio. Hoje, o ceticismo já não é um tique chique de professor de filosofia, como foi no século dezanove, mas um reflexo imbuído em todos os cidadãos pelo sistema escolar obrigatório.

Assim é natural que a ficção tenda a se sobrepor à realidade. Vivemos na realidade virtual na política, na economia e na gestão empresarial. Quando se desvanece a convicção que o conhecimento humano é capaz de aceder à realidade e apreendê-la restam as opiniões e sobra a crença de que de todas as opiniões têm igual valor. Nesta situação as “narrativas” tornam-se mais relevante que os fatos.

As narrativas do PS sobre a TSU e da imprensa europeia sobre Hillary Clinton dariam bons exemplos. Mas outro exemplo, quase tão mediático, é-nos oferecido pela narrativa do filme “Silêncio”. Que ficção não é História é a desculpa do costume para casos destes. Como a narrativa de “Silêncio” é vendida como ficção, argumenta-se que não tem de corresponder aos fatos estabelecidos pela ciência histórica. O problema é que, como já não se acredita na possibilidade de qualquer réstia de objetividade na História, e também porque se consome cada vez mais ficção, a narrativa que fica na cabeça é a da ficção e a que desaparece é a da História. A ponto dos jornais se referirem à ficção de “Silêncio” como “um retrato histórico”. A atitude mental da nossa época é conducente a que o retrato virtual oferecido por Scorsese sobre Cristóvão Ferreira e os dois jesuítas que vão para o Japão em sua busca se torne mais real que a realidade histórica cristalizada em dezenas de manuscritos do século dezassete que chegaram até nós.

Mas qual é o retrato histórico de Cristóvão Ferreira (c. 1580—1650) que nos oferecem as fontes do século dezassete? Para quem estiver interessado em saber mais existe material detalhado e acessível na net (meu aqui e outro melhor aqui). Mas podemos resumidamente referir que Ferreira nasceu em Torres Vedras, arquidiocese de Lisboa, cerca de 1580, e que entrou para a Companhia de Jesus em 1596. Fez dois anos de noviciado em Campolide e depois, a partir de 1598, frequentou o Colégio das Artes em Coimbra. Em Abril de 1600 embarcou numa nau para a Índia e chegou a Macau em Agosto de 1601. Aqui completou a sua formação intelectual frequentando os cursos de filosofia (3 anos) e teologia (4 anos) do Colégio da Madre de Deus. Foi ordenado em finais de 1608 e depois embarcou para o Japão na primeira nau disponível, na Madre de Deus, precisamente na sua última viagem. Ferreira não assistiu ao épico combate que resultou na destruição desta embarcação em Nagasaki, porque logo a seguir a desembarcar foi para o seminário de Arima. Em Macau e em Arima aprendeu o japonês a ponto de se tornar completamente fluente. Em 1610 foi para a capital imperial onde se tornou conhecido e popular nos círculos intelectuais, especialmente entre o grupo que veio dar origem à wasan, a matemática japonesa, e entre os cosmólogos independentes, que começavam então a contestar a cosmologia e o calendário oficiais. Também ficou conhecido, no imaginário japonês, pela prática ativa das sete obras de misericórdia corporais: dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, vestir os nus, visitar os encarcerados, abrigar os sem abrigo, visitar os doentes e sepultar do mortos.

Quando se deu a proscrição do Cristianismo e a expulsão dos missionários em 1614 Ferreira passou à clandestinidade. Em 1617 deixa a capital e passa a exercer a sua atividade em Kyushu, especialmente em Nagasaki e arredores. Em 1633 o padre Sebastião Vieira (1571—1634), o responsável pela missão jesuíta no Japão, também ele na clandestinidade, é preso pelas autoridades e Ferreira assume a direção de empresa jesuíta. Por pouco tempo, porque no ano seguinte também ele é capturado. O que tornou Ferreira notável e conhecido em todo o mundo, de Nagasaki a Edo e do Rio a Cracóvia, foi o de ter sido o primeiro missionário a apostatar. A Cristandade ficou incrédula e os jesuítas em choque. Fizeram-se jejuns e penitências públicas por todo o lado, de Goa a Vilnius. Antes dele outros padres e irmãos, e muitas centenas de leigos, tinham sido submetidos à laje, ao cavalo de madeira, à suspensão, ao caldeirão, à fogueira, à cruz e à fossa sem cederem nas suas convicções relativamente à Verdade. Ferreira tinha sido posto na fossa.

A fossa, diga-se de passagem, era considerado o tormento mais excruciante de todos, de acordo com relatos coevos que chegaram até nós. O supliciado era revestido com um mino, uma fatiota de palha de arroz, atado com força à volta de todo o corpo, nos pés e pernas, abdómen, braços e tórax, e pendurado de cima para baixo mas de modo que a cabeça ficasse numa fossa, onde usualmente era posto excremento; um sobrado, apenas com espaço para o pescoço, era posto à volta do cachaço para que não pudesse sentir a luz e fazer uma ideia da passagem do tempo; e eram feitos dois golpes nas têmporas de modo a evitar uma morte prematura devido à subida da pressão sanguínea no cérebro. E, já agora, valerá a pena notar que não havia intervalos para refeições, sonecas, ou outras atividades motoras ou excretoras: uma vez na fossa só a morte ou a submissão às exigências da política estatal interrompia a violência. As dores, que se começavam a sentir pouco depois da pessoa ter sido pendurada, são sempre descritas como sendo indiscritíveis: todas as fontes referem que nenhum outro tipo de dor pode ser dado em comparação. A morte ocorria usualmente ao fim de dois a cinco dias, mas uma das mãos era deixada livre fora do mino para que a vitima da violência do Estado pudesse dar um sinal previamente estipulado de que acedia às exigências que lhe eram feitas. Juntamente com Ferreira, a 18 de Outubro de 1633, foram postos na fossa outros cristãos, um dos quais o padre Nakaura Julião (1568—1633), que tinha sido um dos quatro embaixadores japoneses à Europa em 1582-1590 e colega de Ferreira no Colégio da Madre de Deus. Mas enquanto Nakaura exalou o seu espirito ao fim de quatro dias de tortura, Ferreira, que era o chefe, fez o sinal com a mão ao fim de seis horas.

Que Ferreira tenha apostatado levado pela angústia do sofrimento que os cristãos padeciam é uma estória bonita, e que consola a muitos espíritos contemporâneos, mas é ficção. É de frisar que os diálogos de “Silêncio” não são apenas ficção, muitos deles são ficção improvável. Nenhum dos que com ele estavam na fossa foi libertado, e quase nenhum das centenas que se lhe seguiram quiseram ser poupados ou foram poupados. Os japoneses do século dezassete eram rijos, rijos na fé e na incredulidade, rijos na capacidade de sofrer e rijos na capacidade de infligir sofrimento. Seres muito diferentes dos leitores fofos e adocicados de Endo Shusaku na década sessenta, e dos cinéfilos de hoje.

Depois da apostasia Ferreira foi naturalizado japonês, foi-lhe atribuído o nome de um criminoso que tinha sido justiçado, Sawano Chuan, foi-lhe imposta como família a mulher e os filhos do condenado, e foi feito funcionário público. Nas suas novas funções Sawano Chuan participou como interrogador de cristãos que eram torturados, com o fim de obter denúncias de outros correligionários, e no processo ganhou má reputação entre os cristãos japoneses. Foram-lhe também encomendadas várias obras pelo governo, entre as quais um tratado anticristão, Kengiroku, e um tratado sobre a cosmologia ocidental, Kenkon Bensetsu, que tem como peculiaridade ser o primeiro tratado escrito em japonês em que se expõe a esfericidade da Terra, e em que se explica como se pode perceber que na realidade esta é de fato redonda, e que não se trata de apenas mais uma teoria que quem quiser pode aceitar se lhe apetecer.

Os personagens Sebastião Rodrigues e Francisco Garupe da estória são ficção, mas a estupefação de muitos jesuítas ao ouvirem da apostasia fez com que de fato alguns fizessem longas e arriscadas viagens para contactar Ferreira e chamá-lo à razão. O primeiro foi o padre Marcello Mastrilli (1603—1637), que partiu da longínqua Itália e em 1637 chegou ao Japão, onde foi imediatamente apanhado e posto na fossa sem chegar a se encontrar com Chuan ou com cristãos japoneses. Como ao fim de três dias ainda não tinha morrido, as autoridades impacientaram-se e decidiram acelerar o processo com a sua decapitação.

Outro foi o padre Pedro Kibe Kasui (1587—1639), que viajou clandestinamente do norte do Japão para se encontrar com Chuan. Também foi preso mas teve a sorte de ver a fruição do seu desejo de ser interrogado pelo apostata. Aproveitou-a para lhe implorar que regressasse ao Cristianismo, mesmo com o custo da vida. Não teve no entanto qualquer poder persuasivo no ex-jesuíta, foi posto na fossa e morreu. Foi beatificado em 2008.

Seguiu-se em 1643 um grupo composto pelos padres Giovanni Rubino (1578—1643), Alberto Mezchinski (1598—1643), Diego Morales (1604—1643), Francisco Marques (?—1643) e António Capace (1606-1643) a que se adicionaram três catequistas. Rubino, que tinha sido provincial jesuíta na India, partiu de Goa mas as autoridades em Macau não o deixaram rumar para o Japão. Teve então de ir para Manila, onde arranjou um junco para o seu grupo. Assim que puseram pé em Kagoshima foram presos antes de qualquer ensejo de contato com cristãos locais. Foram tratados com todas as cortesias da etiqueta japonesa para com os inimigos do Estado: começaram na laje e terminaram todos, literalmente, na fossa.

Finalmente, um último grupo, composto pelos padres Pedro Marques (1575—1657), Afonso de Arroyo (1592—1643), Giuseppe Chiara (1602—1683), Francesco Cassola (1603-1644), André Vieira (1611-1678) e cinco leigos, tentou também reconverter Chuan. Nenhum deles tinha sido discípulo de Ferreira, mas não há que duvidar da preocupação fraternal que nutriam pela sua vida espiritual. Foram apanhados em Oshima por um grupo de pescadores e enviados para Edo, onde foram processados. Ao contrário das suas expetativas não lograram convencer Chuan, antes foram convencidos por ele, se bem que com a ajuda do argumento esmagador da laje e outros instrumentos coadjuvantes. Depois de apostatarem também eles receberam um nome japonês, mulheres de ladrões decapitados e uma pensão vitalícia para seu sustento. No entanto, ao contrário de Chuan que gozava de alguma liberdade de movimentos em Nagasaki, estes foram confinados, até à morte, no Kirishitan Yashiki, uma prisão-quinta, em Edo, que os isolava de todo o mundo. Embora não tenham estado em contato com cristãos japoneses terão sido estes os missionários que serviram de inspiração para o Sebastião Rodrigues e Francisco Garupe de “Silêncio”.

Não há dúvida que a novela de Endo Shusaku é de uma beleza literária notável ao retratar a complexidade dos sentimentos de um cristão empenhado e convicto sob a pressão atroz dos sofrimentos próprios e daqueles que estima. E o mesmo se pode dizer do filme de Scorsese em que o encanto da paisagem e a beleza da banda sonora são acrescentados ao trama empolgante do drama. No entanto é lamentável que ambos tentem sub-repticiamente passar por realidade o que não passa de ficção usando uma técnica ardilosa: juntando a um personagem histórico de carne e osso duas figuras fantasiosas de padres que nunca existiram. O autor poderia ter escrito a mesma estória sem lá ter posto o personagem histórico Cristóvão Ferreira e a novela seria só novela; também poderia ter feito um relato fatual, com o personagem histórico Cristóvão Ferreira acompanhado de outros personagens históricos, como Chiara ou Cassola, e teria então escrito História. Mas escolheu misturar tudo.

Qualquer argumento em defesa da realidade histórica e contra a sua contaminação por fantasias será de difícil aceitação na idade do pokemon-go, da geringonça e de Donald Trump Presidente. Houve eras em que ficção era ficção e negócios eram negócios. Durante séculos filósofos acreditaram que o conhecimento da realidade era possível. Como consequência despendiam um esforço considerável em justificar que o conhecimento que propunham se adequava á realidade física, social e moral, e faziam-no com entusiasmo e otimismo. Hoje esse entusiasmo e otimismo desapareceram. Podemos até comparar a epistemologia da nossa civilização ao Sebastião Rodrigues do filme: otimista e produtiva enquanto manteve a fé; seca, cínica e dilacerada depois de apostatar."

José Miguel Pinto Santos,
Professor na AESE Business School

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Porque hoje é um grande dia | porque vale a pena ser fiel


As vidas apaixonadas não são comerciais, vendem pouco, não são populares...
As vidas apaixonadas são entregues, são as melhore, são as maiores...
De hoje para a história: AQUI



quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Marca n'Agenda | Porque há vida depois da morte



D. Javier Echevarria: Surf, só à terça-feira!

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a carta de um filho espiritual ao seu Padre
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Para Deus não há acasos e, por isso, foi providencial que o prelado do Opus Dei, D. Xavier Echevarria, falecesse ontem, dia de Nossa Senhora de Guadalupe, aos 84 anos, em Roma.

São Josemaria Escrivá de Balaguer, fundador do Opus Dei, era muito devoto da Santíssima Trindade, as três pessoas que há no único Deus – Pai, Filho e Espírito Santo – mas também de uma outra muito santa trindade, formada pela Sagrada Família de Nazaré: Jesus, o próprio Filho de Deus encarnado, sua mãe Maria e o seu marido, José.

São Josemaria, de certo modo, também veio a constituir, com os seus dois imediatos sucessores, uma certa ‘trindade’ mas, como é óbvio, sem qualquer pretensão a qualquer analogia com as referidas trindades! Com efeito, mais não era do que um trio, ou uma tróica, composta por S. Josemaria, por D. Álvaro del Portillo, que viria a ser o primeiro prelado do Opus Dei, e por D. Xavier Echevarria, nessa altura mero sacerdote e secretário do fundador: ambos, com efeito, costumavam acompanhá-lo sempre. Depois da morte de Escrivá e da eleição do seu sucessor, em 1975, Echevarria passou a ser secretário-geral do Opus Dei e, em 1982, vigário-geral da prelatura, até à sua própria eleição e nomeação como prelado, após o súbito falecimento, em 1994, de D. Álvaro del Portillo, entretanto beatificado pelo Papa Francisco. Foi ainda o Papa São João Paulo II quem, em 1995, elevou D. Xavier ao episcopado, como tinha feito já com o seu antecessor, por ser canonicamente congruente com o seu múnus prelatício.

Para Deus não há acasos e, por isso, foi providencial que D. Xavier Echevarria, de 84 anos, viesse a falecer no dia em que liturgicamente se celebra a festa de Nossa Senhora de Guadalupe. São Josemaria, em 1970, durante uma viagem pastoral ao México, ao contemplar um quadro da aparição de Maria ao índio Juan Diego, comentou: “Assim quereria eu morrer: olhando para Nossa Senhora e que ela me desse uma flor”. Depois de um breve momento de silenciosa oração, concluiu: “Sim, gostaria de morrer diante deste quadro, com Nossa Senhora a dar-me uma rosa”. E assim morreu, de facto, no dia 26 de Junho de 1975, em Roma, pelo meio-dia, hora particularmente mariana: ao entrar no seu quarto de trabalho, olhou para a imagem de Nossa Senhora de Guadalupe e caiu, fulminado, ao chão, para expirar pouco depois.

Chamados a Roma os eleitores, em representação de todos os fiéis do Opus Dei, votaram unanimemente naquele que tinha sido o mais directo colaborador do santo fundador. Álvaro del Portillo tinha também participado intensamente nos trabalhos do Concílio Vaticano II, nomeadamente como secretário da comissão que redigiu o decreto relativo à missão e vida sacerdotal. Como sucessor de Escrivá, coube-lhe a difícil missão de levar a bom termo o processo de reconhecimento canónico do Opus Dei como prelatura pessoal, solução jurídica já prevista e desejada por Escrivá mas que só com Portillo foi possível implementar. Sob o seu impulso e com a bênção de S. João Paulo II, fundou a Universidade Pontifícia da Santa Cruz, na cidade eterna, e promoveu o trabalho pastoral e social do Opus Dei em muitos países.

Poucas horas depois da sua chegada a Roma, de regresso de uma breve viagem à Terra Santa, D. Álvaro del Portillo faleceu no dia 23 de Março de 1994. São João Paulo II, de quem era muito amigo, fez questão de ir pessoalmente, nesse mesmo dia, à cúria prelatícia, para rezar diante dos seus restos mortais. Por segunda vez na história desta obra de Deus, foi despoletado o processo eleitoral previsto no direito próprio da prelatura, de que resultou a eleição do então vigário-geral, Mons. Xavier Echevarria. São João Paulo II confirmou a eleição nomeando-o, no próprio dia 20 de Abril de 1994, prelado do Opus Dei e ordenando-o, pouco depois, bispo.

D. Xavier Echevarria, não obstante o apelido basco, era madrileno, mas viveu praticamente toda a sua vida em Roma, com S. Josemaria Escrivá e o Beato Álvaro del Portillo. Era proverbial a sua boa disposição, a sua humildade e a sua simplicidade: raramente, mesmo já sendo prelado e bispo, trajava de outra forma que não fosse uma simples batina preta, como qualquer padre, sem outro distintivo do que a cruz peitoral e um muito discreto e simples anel episcopal. Era tratado por padre por todos os fiéis da prelatura, dispensando outras fórmulas mais cerimoniosas mas menos familiares. Numa ocasião em que padeceu uma grave insuficiência cardíaca, disse a D. Álvaro que era chegada a hora de o substituir, como vigário-geral, por alguém mais válido, numa atitude de grande desprendimento e humildade.

Numa das suas últimas vindas a Portugal, tive ocasião de jantar com ele e, depois, participar numa muito amena reunião familiar. Sabendo do seu bom humor, enquanto lhe oferecia uma pagela com uma oração que compus para os surfistas, perguntei-lhe se praticava esse desporto, tão popular entre os jovens. Já octogenário, riu-se do meu atrevimento, ao mesmo tempo que me respondeu: Surf, só à terça-feira!

Já neste ano recebi uma sua carta pessoal, muito carinhosa, a propósito de uma minha doença e consequente internamento hospitalar. Sempre que morria algum dos mais velhos fiéis da prelatura, fazia também questão de escrever uma carta para as pessoas da Obra nesse país, consolando-as no seu luto. Todos os meses, também neste último do ano que foi também o último da sua vida, mandava uma carta-circular, não só para as pessoas do Opus Dei mas também para os cooperadores e amigos, em que nunca faltava alguma citação do magistério recente do Santo Padre, nem o pedido de orações pelo Papa Francisco, por toda a Igreja, pela Obra e, em especial, pelos mais necessitados.

Os primeiros cristãos chamavam dia de natal à data da morte, porque é o momento do nascimento para a vida eterna. Muito embora, humanamente, esta hora seja de tristeza e saudade, espiritualmente é de grande felicidade, na filial esperança de que aquela tão humana, feliz e santa ‘trindade’ – S. Josemaria, o Beato Álvaro e D. Xavier – já se tenha reencontrado junto da trindade da terra – Jesus, Maria e José – e da Santíssima Trindade. Laus Deo!

Padre Gonçalo Portocarerro, Observador 




domingo, 20 de novembro de 2016

A propósito do dia de hoje*, a propósito das eleições, a propósito da democracia...



(*dia de Cristo Rei)

selfishness

Crash! by Werner Knaupp
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Há cerca de dois meses estava em casa de um grande amigo meu, um homem de fé, cristão (não católico) e, por curiosidade, perguntava-lhe acerca da fé e da religião dele, como encaravam Cristo, os Santos, católicos, judeus, etc. Às tantas, a meio da conversa confessei-lhe: “Já tive Fé, já soube o que é tê-la e ter esse conforto na Fé que tu tens. E pergunto-me muitas vezes como a perdi, não faço ideia” e ainda eu não tinha acabado responde-me ele: “Não sabes como a perdeste? Não é óbvio? Perdeste-a porque não a praticaste”
Meu, aquilo bateu-me. Poucas vezes nesta minha não tão curta vida ouvi tanta sabedoria numa coisa tão simples. Porque é assim em tudo, rigorosamente tudo.
Como perdemos a paixão pelos/as parceiros/as que escolhemos? Não praticamos essa paixão. Como lhes perdemos o amor? Não o praticamos. Como perdemos amizades? Não as praticamos.
No meio disto, há esta coisa muito new age do direito a sermos felizes, nada mais interessa, “eu quero ser feliz”, “eu tenho o direito a ser feliz”, eu, eu, eu, eu isto, eu aquilo e no meio, perdemos completamente a noção do que é importante e do que nos faz realmente felizes. Que não é mais que isto: praticar a paixão, praticar o amor, praticar as amizades, praticá-las sempre. Isto implica muito mais que o eu, eu, eu, eu.
Bem sei que falar é fácil e ainda por cima não sou exemplo de coisa nenhuma. Mas aquela afirmação deste meu amigo sobre a fé, fez mais pela minha visão do Mundo e pela noção do que é a felicidade verdadeira (que não é um estado, são momentos, a felicidade como estado não existe) do que os milhares, sim milhares, de livros que já li e que todas as experiências porque passei.
Por isso, não me venham com merdas, lembrem-se da epifania do Kevin Spacey em A Beleza Americana quando tem a miúda, amiga da filha, nua na cama. E deixem-se de merdas de ir à procura da felicidade noutro sítio diferente daquele em que vocês estão. Aí onde vocês estão exactamente agora, quando lêem isto, vocês praticam o que vos faz felizes, a paixão que já conheceram, o amor que já tiveram por quem anda por aí à vossa volta? Aposto que não. E nem dais conta e eu idem. Foda-se lá a burrice.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Misericórdia.

Talvez seja o desafio mais difícil do ser humano, mas é aquele que o aproxime mais de Deus: a Misericórdia: um amor tão profundo, uma compaixão integra, sem egoísmo, generoso, sem receber nada em troca, grande e completo.
O mundo não acredita na Misericórdia, por isso mais do que nunca o mundo necessitou tanto da Misericordiosa.
Neste domingo, dia 20 dia do Cristo Rei, acaba o Jubileu do Ano Santo da Misericórdia, decretado pelo Papa Francisco. 
Faltam 4 dias, mas durante 4 dias ainda se pode fazer muitas coisas... fica aqui a sugestão:

As obras de Misericórdias são \\14// (\\7// Espirituais e \\7// Corporais) _______________________________________________________

Obras de misericórdia corporais:
1) Dar de comer a quem tem fome 
2) Dar de beber a quem tem sede
3) Vestir os nus
4) Dar pousada aos peregrinos
5) Visitar os enfermos
6) Visitar os presos
7) Enterrar os mortos
Obras de misericórdia espirituais: 
1) Dar bons conselhos 
2) Ensinar os ignorantes
3) Corrigir os que erram
4) Consolar os tristes 
5) Perdoar as injúrias
6) Sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo
7) Rezar a Deus por vivos e defuntos.
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(imagem tirada d'aqui)

terça-feira, 15 de novembro de 2016

“APRENDI QUE NÓS ESTAMOS AQUI PARA AMAR E SERVIR”



Dulce Frazão tem dezanove anos e uma história para contar. Está a começar o segundo ano da Licenciatura em Ciências da Comunicação, na Universidade Nova de Lisboa, tendo passado um ano da sua vida a fazer voluntariado no estrangeiro.
É alegre e decidida. Os olhos escuros e exóticos brilhavam quando se sentou na mesa do café. Durante a conversa, mostrou-se segura das suas palavras, soltando frequentemente sonoras gargalhadas enquanto revivia as experiências do último ano. A sua descontracção e expressividade não a impediram de manter, simultaneamente, uma atitude serena. Sentada à sua frente, interroguei-a sobre a viagem que realizara, com o objectivo de descobrir o impacto que tivera na sua vida.

Dulce, quando acabou o 12º ano decidiu ir um ano fazer voluntariado para o Peru e para os Camarões. O que a motivou a tomar esta decisão?

Bem, eu desde que era pequenina não sabia que curso ia escolher, nem que rumo a minha vida ia tomar. Por isso, achei que fazer esta viagem seria uma óptima maneira de me conhecer melhor.

Qual foi a reacção dos seus pais quando lhes disse que queria ir um ano para fora?
Os meus pais receberam demasiado bem (risos). Foram espectaculares!

Foi sozinha?
Sim. Completamente sozinha mas a confiar imenso nas associações que me iam receber no outro lado do mundo.

Que associações eram?
No Peru foi o instituto Condoray, que é um instituto para formação profissional da mulher. Nos Camarões estive com a APF, Association Pour La Promotion De La Femme, que organiza imensos cursos de empreendorismo. Estas associações são óptimas, pois apoiam muito as mulheres de lá, para que possam viver bem a sua vida e aprendam a geri-la.

Como confiava tanto em associações que não conhecia?
Não conhecia mas identificava-me com os valores e isso dava me muita segurança. Não iria com uma associação que nunca tivesse ouvido falar na minha vida sem recomendação nenhuma. Tinham sido recomendadas.

Quando chegou lá, ao aeroporto do Peru, o que é que sentiu? Como foi recebida?
No Peru fui acolhida por uma família portuguesa, uma semana antes de ir viver para a residência porque a minha mãe achou que ia ser um choque muito grande para mim (risos) Comecei a aprender a falar espanhol porque eu não sabia nada. Foi óptimo para poder descansar e adaptar-me.
Quando efectivamente fiz a aterragem não foi no aeroporto às 5 da manhã quando cheguei pela primeira vez ao Peru. Quando cheguei à aldeia, à residência de Condoray é que foi a minha verdadeira aterragem! (risos) Até lá, não estava muito bem consciencializada ainda do que me esperava. Foi impactante. Era tudo em espanhol, havia coisas que não percebia e a barreira da língua faz imensa diferença mas pronto, passado um mês já estava tudo bem.

Conseguiu adaptar-se à língua?
Sim é muito fácil quando se está a contactar com a língua o dia inteiro, sempre a ouvir. Eu perguntava tudo!

No Peru que tipo de voluntariado fazia?
De manhã trabalhava na residência. Fiquei na parte da cozinha. Lavava pratos, descascava batatas… Isso ajudava-me a manter os custos da estadia lá. Depois era o almoço e à tarde ia fazer promoção rural.
No início, quando comecei, ia às aldeias e tinha uns planos de actividades para os miúdos, simples e pouco estruturados. Só quando os comecei a conhecer melhor é que percebi quão preciosas eram essas horas que passava com eles para dar o máximo de mim e realizar atividades que eu considerasse boas para eles crescerem.  Se calhar não vamos mudar o mundo mas podemos fazer uma pequena diferença…

Normalmente eram crianças com poucos recursos económicos?
Sim eram pobres. Eu não sabia disto mas depois disseram-me que à medida que fiquei lá mais tempo, ia trocando para aldeias sempre mais pobres. Havia miúdos descalços, só com a mãe porque o pai os tinha abandonado, outros viviam com a avó… Algumas realidades eram um bocado duras. Sim, eram pobres. Todos. Alguns iam à escola e notava-se que os que eram mais interessados e gostavam de ler eram mais despachados naqueles jogos que nós fazíamos. Mas sabiam pouquíssimo de história e de geografia. Alguns nem sequer queriam saber. Tinham idades muito diferentes, dos 3 aos 12 anos.

Todos no mesmo grupo?
Sim.

E nos Camarões? Como era?
Nos Camarões era completamente diferente. Eu também participei num programa de voluntariado, se bem que não foi logo desde o início. Quando cheguei, sabia que a residência tinha sido instalada numa casa nova, que estavam a ter imensas obras e que eu ia ajudar no que fosse preciso.

Então ficou lá a viver?
Sim, fiquei a viver num centro para universitárias em Yaoundé. No início eu ajudava no que fosse preciso, desde catalogar a biblioteca toda e pôr os livros na base de dados a limpar.

O que é que notou em Yaoundé a nível social? Nota-se à distância as dificuldades que as pessoas passam?
Não é assim tão visível porque a maior parte dos miúdos vai a escola e vêm-se imensos, muito mais do que na Europa, todos fardados. É um costume óptimo. Nas aldeias é que se vem mais crianças na rua a brincar ou a ajudar os pais.
O povo camurenês é muito forte. Não são nada de se andar a queixar, de cabeça baixa. Podem ter um problema mas andam sempre de queixo erguido, com compostura, a rir e a fazer piadas sobre as desgraças da vida. É mesmo impressionante. Claro que eles sofrem e não escondem o sofrimento, na medida em que não fingem que não sofrem, mas também não andam a chorar pelos cantos.

Que aconselharia a alguém que estivesse a pensar embarcar numa aventura destas?
Aconselharia a ir com um plano definido e concreto do que quer fazer, de como quer ajudar e como é que quer ser útil. Mas mais importante que esse plano, é ir com uma atitude de completa disponibilidade. Isso é fantástico porque já que estamos noutro pais para ajudar, não temos nada que nos prenda para não aceitar tudo o que nos peçam.

Se tivesse que escolher uma experiência deste ano, qual é que seria a mais marcante para si?
Um projecto que fizemos durante dois meses, que se chamava “Mulheres Empreendedoras”. Eu e outras universitárias recebíamos uma formação relacionada principalmente com gestão da casa e assim, e depois cada uma, encontrava dez mães numa aldeia para ajudar com essa formação. Eu estive com uma mãe que era costureira, outra que trabalhava nos campos, outra que guardava porcos… Íamos ver se estava tudo bem e ajudávamos nas contas que fosse preciso. Foi o mais interessante porque eram conversas de meia hora de forma muito pessoal. Tinha que saber bem o que queria ensinar e dizer de uma forma simples e com exemplos muito concretos que se aplicassem à vida dessa pessoa. Quando saía de lá para apanhar os táxis colectivos e as carrinhas que houvesse para voltar para casa estava sempre demasiado feliz (risos), ficava mesmo contente no fim.

Uma experiência destas pode ser muito enriquecedora se se souber aproveitar bem. Como contribuiu este ano para a sua vida? Era uma pessoa diferente antes de ir?
Acho que era mais egoísta. Mas não posso dizer que esta experiência me mudou completamente e que tudo o que eu aprendi agora aplico a cem por cento. Não, é uma luta constante. Mas aprendi que literalmente nós estamos aqui para amar e servir. Não é possível estarmos cá e o tempo da nossa vida ser para sermos bem sucedidos, para pensar na nossa carreira, na nossa vidinha, nas nossas coisas…  Logicamente é impossível. Nós não podemos ser todos servidos, não dá.  Nós estamos aqui para amar e para nos darmos.

Se tivesse que definir esse ano numa palavra, ou em poucas frases quais seriam?
Dom. Foi um ano em que recebi muito. Foi uma dádiva. Agradeço imenso os sítios onde estive, era mesmo onde devia ter estado.

Foi um presente…
Sim, é que não foi outra coisa. Não posso dizer que foi um ano em que eu mudei a vida das outras pessoas e elas mudaram a minha porque as mudanças estão sempre a acontecer. Fez-me muita confusão perceber isso, que de um dia para o outro, nós podemos desaprender. Sair daquele “ oásis” foi uma chapada na minha humildade porque imensas coisas que eu tinha aprendido, desaprendi por não estar a aplicá-las todos os dias. Agora é reaprende-las a aplica-las, sendo que a missão não é tão concreta de voluntariado mas é um “dar “diferente: o dar da família, dos amigos, dos transportes públicos, é dar mas de outra maneira…

Como é que uma pessoa pode dar-se no dia – a - dia, no meio em que se encontra?
Eu acho que é nas coisas mais pequeninas. Estar atento às pessoas que estão ao nosso lado e às pessoas por quem passamos e que estão mais próximas. É muito importante ir às periferias e ajudar mas às vezes há pessoas que estão mesmo ao nosso lado e precisam de ajuda.

Darmo-nos também pode ter a ver com fazer aquilo que temos que fazer em cada momento?
Sim sim, é essa a ideia. Estar onde devo e estar no que faço. Estar nas precisas obrigações que temos que cumprir, dos estudos e nos sítios onde passo e com as pessoas com quem estou. E estar a 150 por cento. Onde eu estou tenho que estar.

Portanto, viver muito o presente?

Sim. Porque se não estamos a viver no presente, estamos a viver no futuro ou no passado, acabamos por estar fechados. E isso não é nada bom. Se somos precisos para estarmos aqui, é para estarmos a 150 porcento. Ou tudo ou nada não é? Não é para vivermos e fazermos meias coisas ou vivermos a meias, meia vida. Não, é viver uma vida inteira e só da para viver uma vida cheia se formos cheios em cada momento. 




Maria Calderón