segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Silêncio de Martin Scorsese (III)

Ainda não vi o filme (parece que chegará no próximo fim-de-semana ao Centro Cultural de Angra do Heroísmo). Depois destes opinion maker AQUI e AQUI não queria deixar o artigo do habitué César das Neves.

De facto foi um silêncio bem barulhento:
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Martin Scorsese fez um filme muito barulhento chamado Silêncio. Adaptação do romance homónimo de Shusaku Endo (1966), relata a história maravilhosa dos mártires Ichizo, Mokichi, padre Garupe e uma multidão de missionários e fiéis do Japão em meados do século XVII, numa das mais impiedosas e esmagadoras perseguições da história da Igreja. Scorsese, que fez Jesus descer da cruz em A Última Tentação de Cristo (1988), é fascinado com o fenómeno da apostasia e centra a atenção no drama de dois padres que abandonaram a fé sob tortura. O filme constitui uma bela obra cinematográfica e uma profunda reflexão sobre as questões da fé, perseguição religiosa e apostasia, mas tem três problemas principais.
O primeiro é histórico. O protagonista, padre português Sebastião Rodrigues, é fictício, mas o enredo baseia-se na vida verdadeira de Cristóvão Ferreira, superior interino da província japonesa da Companhia de Jesus que apostatou sob tortura a 18 de Outubro de 1633. A sua renúncia gerou na época grande consternação em toda a Igreja e várias missões para o converter, como a relatada no filme. A fiabilidade da descrição é grande, mas omite que existiram "três tentativas específicas de contactar Ferreira e persuadi-lo a renunciar à sua apostasia" (Cieslik, Hubert [1973] "The Case of Christovão Ferreira". Monumenta Nipponica vol. 29, n.º 1, p. 44): o padre Marcello Mastrilli S.J. martirizado a 17 de Outubro de 1637, o japonês Pedro Kibe S.J., martirizado em Julho de 1639, e o padre Antonio Rubino S.J. e quatro companheiros, martirizados em Março de 1643. Apenas num segundo grupo de dez companheiros de Rubino, chegados ao Japão em 1643 e presos ao desembarque, terão existido abjurações. Também teria sido digno mencionar que o próprio Ferreira renunciou à apostasia e morreu mártir em 1650, segundo relatos que a crítica histórica considera aceitáveis (op. cit. p. 46-48).

O segundo problema é moral. O filme baseia-se num falso dilema ético, a torturante escolha do padre entre abandonar a fé ou entregar os seus fiéis à tortura. O sacerdote recomenda repetidamente a apostasia para os crentes se livrarem do suplício e a voz do próprio Jesus apoia a falácia dos perseguidores e sugere a renúncia. A conclusão parece ser que os apóstatas são-no por generosidade e os mártires insensíveis e fanáticos. Mas a verdadeira escolha, como a vêem os crentes, coloca-se entre o tormento da fossa e o horror ainda maior de uma vida sem fé, sem esperança, sem Cristo. Foi por fervorosa dedicação à salvação dos cristãos japoneses que os mártires sofreram, e os apóstatas cederam, não por amor ao próximo, mas por fraqueza. Deus, na sua infinita misericórdia, perdoa sempre que lhe pedimos, como o filme comoventemente manifesta, mas não confunde o bem com o mal.

O terceiro problema é de consistência lógica. O tema do filme é supostamente o silêncio de Deus; mas Ele não só aparece ao padre Rodrigues, mas fala explicitamente mais de uma vez. Além disso, é estranho que o protagonista, recriminando tantas vezes o Senhor por não lhe responder, descure as formas habituais de Deus falar aos seus fiéis: a Bíblia, palavra de Deus, praticamente ausente do filme, e o testemunho dos irmãos, que neste caso clama com toda a força a presença divina.

No entanto, os inquisidores fazem um diagnóstico correcto da fraqueza do padre Rodrigues, o seu orgulho. A fé humilde dos camponeses japoneses vence a fúria dos perseguidores de uma forma que a arrogância intelectual do sacerdote não é capaz. Rodrigues sente que o sofrimento lhe dá direito a uma revelação particular, sem entender que esse mesmo sofrimento, unido à paixão de Cristo, constitui a maior revelação divina.

Ao contrário do que o inquisidor japonês afirma, a fé não foi derrotada pelo solo hostil do Japão. O argumento de Ferreira a favor dessa tese baseia-se num trocadilho anacrónico, que só funciona em inglês, entre filho (son) e sol (sun). Cristo não precisa de tradução e a fé nipónica, semeada por São Francisco Xavier, resistiu às mais terríveis perseguições e permanece hoje bem presente. O filme explica porquê.

O verdadeiro problema não é o silêncio de Deus, mas o ruído que reina no nosso interior. O cardeal Robert Sarah acaba de publicar um livro ainda não traduzido sobre o tema: A Força do Silêncio contra a Ditadura do Barulho (Fayard, Paris, Out/2016). Como prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, o prelado guineense pode ser considerado o responsável máximo pela oração de toda a Igreja. Cumprindo a sua missão, este volume constitui uma belíssima terapia para os males da sociedade contemporânea: "O silêncio não é uma ausência. Pelo contrário, ele é a manifestação de uma presença, a mais intensa de todas as presenças. O descrédito criado sobre o silêncio na sociedade moderna é o sintoma de uma doença grave e inquietante. As verdadeiras questões da vida colocam-se no silêncio." (p. 36).


João Cesár das Neves, 

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