quarta-feira, 6 de junho de 2012

Requiem

Maria Umbelina Margarida das Angústias do Carmo. Tirando os apelidos. Estes eram os nomes próprios da tia Guida que morreu na passada sexta-feira. A tia Guida era uma das irmãs mais velhas de 12 filhos, dos quais a minha, a nossa, mais que querida e amada Avó Santa é a mais nova. 
Todos os 12 têm assim nomes compridos, muitos nomes próprios, que reflectem a fé católica vivida desde sempre na Família: invariavelmente, nomes de santos ou atribuições de Nossa Senhora, conforme o ano em que nasciam, o dia, a devoção.
A tia Guida teve uma morte boa, se assim se pode dizer. Tinha 92 anos, ficou no hospital uma semana - o tempo para nos prepararmos para a eventualidade de uma notícia má -, recebeu a Santa Unção e morreu a falar com a médica sobre as artroses que a incomodavam sobremaneira, enquanto recuperava da anestesia de uma cirurgia de 4 horas. Assim, morte santa. 
Por isso, em princípio, não devíamos ficar tão afectados. Acresce ainda o facto de ser uma pessoa com um feitio terrível que muitas vezes nos fazia levar as mãos à cabeça. Não tinha filhos, teve uma vida de glamour que contrastou com as dificuldades que experimentou no seu ocaso, e nós, sobrinhos, sobrinhos-netos, irmãos e cunhados éramos a sua família mais chegada.

Como dizia, tudo somado não podia dar tristeza sem fim. Mas deu.
Foi dos funerais mais tristes que assisti.
E a razão prende-se com o amor imenso que temos pela nossa Avó Santa (e pelo Avô Fernando), que foi quem cuidou da tia nos últimos tempos. Ver a nossa Avó chorar como uma criança, ou os nossos tios, já com idade avançada e fisicamente muito débeis a despedirem-se da tia Guida ("mana Guida", como chamavam), com fé de a saberem no Céu, mas com uma imensa e terrível saudade, comoveu-nos a todos e portanto não houve quem não chorasse pela dor destes irmãos.
Irmãos que, naquela hora, voltaram a ser crianças desconsoladas. Estávamos numericamente muitos presentes no funeral, mas os irmãos sentiam-se apenas uns aos outros. Como se a vida tivesse fugido,   como se tudo tivesse sido num instante, ainda ontem ficaram sem a Mãe e agora ficam sem eles mesmos. Eram 12 e agora são 3.

A Mãe dos 12, minha bisavó também foi para o Céu muito cedo, quando a minha Avó tinha 5 anos. Por razões de mobilidade profissional dos ascendentes, nasceram em Goa todos os irmãos. Guerras ditaram interrupções, fugas da Índia para África, de África para a Metrópole. Uma revolução que para uns foi dos cravos, para outros foi a perda de todo um Património Familiar incalculável, casas de Família, capelas com  imagens de santos transmitidas através de gerações destruídas, roubadas, saqueadas. A Biblioteca que o meu Avô Fernando com esforço foi edificando e que na pressa para salvar a vida dos seus teve que deixar.  Não só,  mas talvez também por isso, tornaram-se todos muito unidos e nós, por osmose, também. Por virtude deste lado, mas igualmente por virtude esforço, dedicação e amor do nosso Avô Fernando, que é do mesmo modo mais que querido e muito amado por todos nós. (Os nossos Avós são mais que nossos Pais e é na sua casa que desaguam as alegrias, tristezas, desaires e graças de todos nós. Mas este tema já daria para outro post.)

Neste, queria apenas honrar não a memória ou a vida da Tia Guida, mas a vida dos seus Pais, meus bisavós, que não conheci, mas que tão bem souberam educar os seus filhos e, deste modo, perpetuarem-se através deles e das gerações que se têm seguido.
Julgo que não o fizeram com este objectivo, mas somente com o propósito de os educarem bem para que fossem felizes. E isto falta tanto nestes tempos!

Oxalá saibamos nós também deixar a nossa marca boa entre o nossos, para que outros também se comovam - não para nossa memória ou louvor - mas para que desejem no seu íntimo serem melhores e chegarem mais longe.

Por último, aceitem os queridos leitores deste blog o meu perdão por este requiem tão desajustado ao registo colorido do HEart. Mas não podia deixar de vos escrever acerca da Vida, ainda que, desta vez, tenha sido através de tristeza da morte.



2 comentários:

CM disse...

Assistir por vezes à perda de um familiar querido, faz nos sem dúvida considerar toda uma dinâmica familiar existente muito antes de nós chegarmos ao mundo.
Neste seu post recordei um momento que guardarei no meu intimo para toda a minha vida. Quando a minha tia/madrinha perdeu o marido tinha à sua volta um sem fim de pessoas. Coube-me a mim ir buscar a minha avó (mãe da minha tia), e nunca esquecerei a entrega da minha tia nos braços da sua mãe. A minha avó na altura já tinha poucas forças, mas naquele momento reuniu todas as que tinha e suportou o peso da sua filha nos braços.
Nunca esquecerei esse momento!!!

Maria disse...

Querida Catarina: o teu post é sobre a vida ou sobre a Vida. Porque a morte faz parte da vida. E é a única certeza que temos e, embora nos queiramos preparar, nunca estamos. Mas o que eu acho é que os que vão deixam o seu rasto na terra e deixam-no nos da sua linhagem a quem transmitiram tantos valores. E também tu serás, querida, um canal de transmissão muito, muito aberto. Muita coisa chegará, por ti, aos teus diretos e, por eles, aos deles e assim sucessivamente. Por isso é que eu acho que o futuro é dos filhos das famílias numerosas. Só por isso. Um beijinho (de sentimentos para toda a Família)