《Desço à praia quando o rumor da vila já não me embala o esquecimento. Antes foi a agitação das ruas, as gentes que se tocam e não sabem de si. Tive o perdão do ruído. Fiquei sem mim, embriagado pelo vinagre não olhava para dentro, aí onde se sente a alma quando a carne dorme e nos acusa. Esse dentro de mim não existia, ainda o sol se não levantara sobre a minha culpa. Eu estava ébrio de sono. Gemia a alma sem que a escutasse. Ouvia os seus gritos, mas não precisava de os atender porque o rumor da vila bastava. Eu estava lá em frente, via-me correr do outro lado da praça onde as multidões perdoam tragando o fel do pecado. Era um a mais entre tantos! Podia olhar sem me ver. Podia tocar no corpo sem o sentir. Tinha a alma assim como quem se esquece. Mas a alma grita a dor perdida no meu silêncio. As ruas são muitas mas já não bastam. Posso corrê-las todas, calcar-lhes as pedras e abafar-lhes o cheiro do mar. Nem por isso as ruas não têm pedras. O mar está perto e as ondas de raiva ameaçam sempre afogar as ruas e devorar as praças.
E então desço à praia, quando o rumor da vila já me não esquece. E vejo o mar, e sinto o cheiro do sal. Um medo terrível acorda-me o silêncio. A areia da praia não são as pedras da rua. A brisa da praia não é o rumor das gentes.
Meu Deus, porque me abandonaste neste mar de insónia consentida? Porque me deixaste só quando a areia escalda e o corpo queima? Tenho medo do sol. É tremenda esta luz que não posso olhar! Meu Deus, porque me abandonaste quando a vila e a multidão e os gritos da praça ficaram longe e me recusam? Porque me negaste as lágrimas secas pelo sol? Em volta ninguém ouve o meu silêncio. Estou esfarrapado na alma, a carne ultrajada não tem onde repousar a culpa. Não há abrigo onde me esconda do sol.
Ao lado passa um par de namorados, o sorriso perdido na ternura do abraço, os pés cobertos pelo sal da praia. O meu amor não tem sal. Tenho as mãos nuas, a alma grita mas ninguém a ouve. Roubaram-me o afago a esta pele seca que não sabe chorar. E corro pela areia. E quero quem me esconda do sol e me arranque a alma para o esquecimento da vila. Se de novo me enlouquecesse o tumulto das avenidas que têm pedras e não sabem do mar nem do gosto do sal! Já não há ruas. Arderam as praças. Emudeceram as gentes. Agora é o silêncio. Agora é o tempo da insónia. E a dor.
O sol desce sobre o mar tremendo. As ondas choram. São lágrimas de espuma contra a areia da praia. O céu desvela estrelas quando a noite acorda. Deito-me sem forças na areia. O corpo goteja sangue. Da cor do sol. Sobre mim vem a água. Afaga-me o corpo. E o sol enlaça-me num abraço eterno.》
João Morais Barbosa, in 《Miserere》
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