E naquele galão começavam as
verdades. Porque ela não era mulher de metades: há muito tempo que pedia um galão decidido, em
lugar de uma meia-de-leite, mais fraca, indecisa e incerta. Depois vinha o pão escuro
– que é um pão complexo com menor índice glicémico e cujos cereais não foram tão
bem processados comparativamente ao pão branco. O pão branco entra pela boca,
chega ao estômago, faz picos de insulina brutais e daí a uma hora faz-nos ter fome outra
vez. Pode ser bonito, mas não sacia. O pão de cereais é diferente, é feio, mas
é melhor. Admitamos: custa mais a dizer (pão-de-ce-re-ais), nem sempre há (menina,
só temos carcaça), às vezes até corremos o risco de fazerem troça de nós (esta
agora quer pão-de-cereais porque deve ter a mania que é fina, mas por que raio é que
não pede um pão normal?). Leva mais tempo a digerir, mas é mais nutritivo, mais
saudável e arranca a fome pela raiz.
Ela era assim como o pão e o
galão habituais. E, embora nunca tivesse gostado de tomar o pequeno-almoço fora,
sabia, pela experiência, que ou saía de casa às 7h41 ou já ia apanhar o trânsito
da vida dela!
Mas, na
vida dessa mulher, antes da correria das 7h41, acontecia muita coisa. Gostava de preparar a roupa de véspera para que nada lhe escapasse. E estava sempre elegante, impecável; nos corredores do hospital chamavam-na: a Dra. Massimo Dutti. Ela sabia e ria-se.
Também era logo pela manhã que guardava
um tempo especial para se tornar mais inteira. Gostava de sentar-se com um livro no colo,
direccionava o coração e descobria
Deus, descobrindo-se a si. Tinha posto um vaso de flores (eram violetas) na
janela em frente ao sítio onde rezava. Assim, se lhe fugissem os sentidos, pouco
mais à frente haviam de encontrar-se no essencial – na agressividade da cor
escura das violetas - e percebia até que profundidade e negrume se pode tingir
de roxo um coração.
No resto do dia: tanta coisa. Gostava do que fazia e fazia-o bem
feito. Mas também sabia que a vida não é só trabalho e que às 18h tinha que
picar o ponto noutro sítio. Tirava-a do sério, mas nas alturas em que era mais difícil
remar das obrigações profissionais para outros lagos, lembrava-se tantas vezes do recado que, um dia há muito
tempo atrás, tinha recebido de alguém insuspeito:
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta
vive
E tirava-a do sério porque quando
o recebeu pensou: sim sim, Ricardo Reis!, que cliché, e agora,
não sabia porque é que o cliché lhe vinha tantas vezes à cabeça, em vez de
coisas mais elevadas.
À noite, regava as violetas
olhando pela janela e, nessa hora, era o negrume do céu que a fazia fechar os
olhos pela força das vertigens. Quem disse que a oração do coração era algo complexo e acessível
apenas a uns quantos iluminados? Aos homens e mulheres Massimo Dutti perfeitos,
simétricos e privilegiados – mal sabem eles que ela desencanta as saias no baú
poeirento da avó. Mal sabem eles que esses homens e mulheres não existem.
É que, na vida dessa mulher, a oração não podia ser
mais simples:
por favor, faz-me cada dia mais inteira.
por favor, faz-me cada dia mais inteira.
5 comentários:
Tão giro!!! :)
Teresinha, que saudades tuas..!!!
E eu tuas!!!! É bom ir sabendo algo mais de ti por aqui! Um grande beijinho!
Que paz! Vou pensar nisto no meu frasco de violetas que .. é uma secretária atulhada de processos e códigos. Sim! Eu quero ser cada dia mais inteira, mais próxima da minha humanidade redimida. Obrigada querida Kika. Um beijinho, aqui, blogueiro.
Querida Maria, seja com violetas roxas, processos cinzentos ou códigos negros.. havemos de nos tornar cada dia mais inteiras! Obrigada pelos seus comentários sempre tao simpaticos.. um beijinho grande!
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