Dulce Frazão tem dezanove anos e uma história para contar.
Está a começar o segundo ano da Licenciatura em Ciências da Comunicação, na
Universidade Nova de Lisboa, tendo passado um ano da sua vida a fazer
voluntariado no estrangeiro.
É alegre e decidida. Os olhos escuros e exóticos brilhavam
quando se sentou na mesa do café. Durante a conversa, mostrou-se segura das
suas palavras, soltando frequentemente sonoras gargalhadas enquanto revivia as
experiências do último ano. A sua descontracção e expressividade não a
impediram de manter, simultaneamente, uma atitude serena. Sentada à sua frente,
interroguei-a sobre a viagem que realizara, com o objectivo de descobrir o
impacto que tivera na sua vida.
Dulce, quando acabou
o 12º ano decidiu ir um ano fazer voluntariado para o Peru e para os Camarões.
O que a motivou a tomar esta decisão?
Bem, eu desde que era pequenina não sabia que curso ia
escolher, nem que rumo a minha vida ia tomar. Por isso, achei que fazer esta
viagem seria uma óptima maneira de me conhecer melhor.
Qual foi a reacção
dos seus pais quando lhes disse que queria ir um ano para fora?
Os meus pais receberam demasiado bem (risos). Foram
espectaculares!
Foi sozinha?
Sim. Completamente sozinha mas a confiar imenso nas
associações que me iam receber no outro lado do mundo.
Que associações eram?
No Peru foi o instituto Condoray, que é um instituto para
formação profissional da mulher. Nos Camarões estive com a APF, Association Pour La Promotion De La Femme,
que organiza imensos cursos de empreendorismo. Estas associações são óptimas,
pois apoiam muito as mulheres de lá, para que possam viver bem a sua vida e
aprendam a geri-la.
Como confiava tanto
em associações que não conhecia?
Não conhecia mas identificava-me com os valores e isso dava
me muita segurança. Não iria com uma associação que nunca tivesse ouvido falar
na minha vida sem recomendação nenhuma. Tinham sido recomendadas.
Quando chegou lá, ao
aeroporto do Peru, o que é que sentiu? Como foi recebida?
No Peru fui acolhida por uma família portuguesa, uma semana
antes de ir viver para a residência porque a minha mãe achou que ia ser um
choque muito grande para mim (risos) Comecei a aprender a falar espanhol porque
eu não sabia nada. Foi óptimo para poder descansar e adaptar-me.
Quando efectivamente fiz a aterragem não foi no aeroporto às
5 da manhã quando cheguei pela primeira vez ao Peru. Quando cheguei à aldeia, à
residência de Condoray é que foi a minha verdadeira aterragem! (risos) Até lá,
não estava muito bem consciencializada ainda do que me esperava. Foi
impactante. Era tudo em espanhol, havia coisas que não percebia e a barreira da
língua faz imensa diferença mas pronto, passado um mês já estava tudo bem.
Conseguiu adaptar-se
à língua?
Sim é muito fácil quando se está a contactar com a língua o
dia inteiro, sempre a ouvir. Eu perguntava tudo!
No Peru que tipo de
voluntariado fazia?
De manhã trabalhava na residência. Fiquei na parte da
cozinha. Lavava pratos, descascava batatas… Isso ajudava-me a manter os custos
da estadia lá. Depois era o almoço e à tarde ia fazer promoção rural.
No início, quando comecei, ia às aldeias e tinha uns planos
de actividades para os miúdos, simples e pouco estruturados. Só quando os
comecei a conhecer melhor é que percebi quão preciosas eram essas horas que
passava com eles para dar o máximo de mim e realizar atividades que eu
considerasse boas para eles crescerem.
Se calhar não vamos mudar o mundo mas podemos fazer uma pequena
diferença…
Normalmente eram
crianças com poucos recursos económicos?
Sim eram pobres. Eu não sabia disto mas depois disseram-me
que à medida que fiquei lá mais tempo, ia trocando para aldeias sempre mais
pobres. Havia miúdos descalços, só com a mãe porque o pai os tinha abandonado,
outros viviam com a avó… Algumas realidades eram um bocado duras. Sim, eram
pobres. Todos. Alguns iam à escola e notava-se que os que eram mais interessados
e gostavam de ler eram mais despachados naqueles jogos que nós fazíamos. Mas
sabiam pouquíssimo de história e de geografia. Alguns nem sequer queriam saber.
Tinham idades muito diferentes, dos 3 aos 12 anos.
Todos no mesmo grupo?
Sim.
E nos Camarões? Como
era?
Nos Camarões era completamente diferente. Eu também
participei num programa de voluntariado, se bem que não foi logo desde o
início. Quando cheguei, sabia que a residência tinha sido instalada numa casa
nova, que estavam a ter imensas obras e que eu ia ajudar no que fosse preciso.
Então ficou lá a
viver?
Sim, fiquei a viver num centro para universitárias em
Yaoundé. No início eu ajudava no que fosse preciso, desde catalogar a
biblioteca toda e pôr os livros na base de dados a limpar.
O que é que notou em
Yaoundé a nível social? Nota-se à distância as dificuldades que as pessoas
passam?
Não é assim tão visível porque a maior parte dos miúdos vai
a escola e vêm-se imensos, muito mais do que na Europa, todos fardados. É um
costume óptimo. Nas aldeias é que se vem mais crianças na rua a brincar ou a
ajudar os pais.
O povo camurenês é muito forte. Não são nada de se andar a
queixar, de cabeça baixa. Podem ter um problema mas andam sempre de queixo erguido,
com compostura, a rir e a fazer piadas sobre as desgraças da vida. É mesmo
impressionante. Claro que eles sofrem e não escondem o sofrimento, na medida em
que não fingem que não sofrem, mas também não andam a chorar pelos cantos.
Que aconselharia a
alguém que estivesse a pensar embarcar numa aventura destas?
Aconselharia a ir com um plano definido e concreto do que
quer fazer, de como quer ajudar e como é que quer ser útil. Mas mais importante que esse plano, é ir com
uma atitude de completa disponibilidade. Isso é fantástico porque já que
estamos noutro pais para ajudar, não temos nada que nos prenda para não aceitar
tudo o que nos peçam.
Se tivesse que
escolher uma experiência deste ano, qual é que seria a mais marcante para si?
Um projecto que fizemos durante dois meses, que se chamava
“Mulheres Empreendedoras”. Eu e outras universitárias recebíamos uma formação
relacionada principalmente com gestão da casa e assim, e depois cada uma,
encontrava dez mães numa aldeia para ajudar com essa formação. Eu estive com
uma mãe que era costureira, outra que trabalhava nos campos, outra que guardava
porcos… Íamos ver se estava tudo bem e ajudávamos nas contas que fosse preciso.
Foi o mais interessante porque eram conversas de meia hora de forma muito
pessoal. Tinha que saber bem o que queria ensinar e dizer de uma forma simples
e com exemplos muito concretos que se aplicassem à vida dessa pessoa. Quando
saía de lá para apanhar os táxis colectivos e as carrinhas que houvesse para
voltar para casa estava sempre demasiado feliz (risos), ficava mesmo contente
no fim.
Uma experiência
destas pode ser muito enriquecedora se se souber aproveitar bem. Como
contribuiu este ano para a sua vida? Era uma pessoa diferente antes de ir?
Acho que era mais egoísta. Mas não posso dizer que esta
experiência me mudou completamente e que tudo o que eu aprendi agora aplico a
cem por cento. Não, é uma luta constante. Mas aprendi que literalmente nós
estamos aqui para amar e servir. Não é possível estarmos cá e o tempo da nossa
vida ser para sermos bem sucedidos, para pensar na nossa carreira, na nossa
vidinha, nas nossas coisas… Logicamente
é impossível. Nós não podemos ser todos servidos, não dá. Nós
estamos aqui para amar e para nos darmos.
Se tivesse que
definir esse ano numa palavra, ou em poucas frases quais seriam?
Dom. Foi um ano em que recebi muito. Foi uma dádiva.
Agradeço imenso os sítios onde estive, era mesmo onde devia ter estado.
Foi um presente…
Sim, é que não foi outra coisa. Não posso dizer que foi um
ano em que eu mudei a vida das outras pessoas e elas mudaram a minha porque as
mudanças estão sempre a acontecer. Fez-me muita confusão perceber isso, que de
um dia para o outro, nós podemos desaprender. Sair daquele “ oásis” foi uma
chapada na minha humildade porque imensas coisas que eu tinha aprendido, desaprendi
por não estar a aplicá-las todos os dias. Agora é reaprende-las a aplica-las,
sendo que a missão não é tão concreta de voluntariado mas é um “dar “diferente:
o dar da família, dos amigos, dos transportes públicos, é dar mas de outra
maneira…
Como é que uma pessoa
pode dar-se no dia – a - dia, no meio em que se encontra?
Eu acho que é nas coisas mais pequeninas. Estar atento às
pessoas que estão ao nosso lado e às pessoas por quem passamos e que estão mais
próximas. É muito importante ir às
periferias e ajudar mas às vezes há pessoas que estão mesmo ao nosso lado e
precisam de ajuda.
Darmo-nos também pode
ter a ver com fazer aquilo que temos que fazer em cada momento?
Sim sim, é essa a ideia. Estar onde devo e estar no que
faço. Estar nas precisas obrigações que temos que cumprir, dos estudos e nos
sítios onde passo e com as pessoas com quem estou. E estar a 150 por cento. Onde
eu estou tenho que estar.
Portanto, viver muito
o presente?
Sim. Porque se não estamos a viver no presente, estamos a viver
no futuro ou no passado, acabamos por estar fechados. E isso não é nada bom. Se
somos precisos para estarmos aqui, é para estarmos a 150 porcento. Ou tudo ou
nada não é? Não é para vivermos e
fazermos meias coisas ou vivermos a meias, meia vida. Não, é viver uma vida
inteira e só da para viver uma vida cheia se formos cheios em cada momento.
Maria Calderón