partiu os dois ovos separadamente e depois juntou-os na mesma taça.
Um e depois o outro. Lembrava-se da sua avó e era a voz dela na sua cabeça: aprende minha menina, se partes o ovo
directamente para cima dos outros e esse ovo, por azar, está estragado, lá se
vão todos. Então, apesar de ter sempre a terrível tentação de os partir de
olhos fechados, com um golpe certeiro, de despejá-los a todos para a frigideira
quente, abreviando caminho e confiando cegamente no destino, lá se controlava, sisuda.
Lavava mais loiça, mas era prudente.
Deitou-lhes sal e um pingo de
leite para ficarem macios. Enquanto os batia energicamente, olhou-se, de
soslaio, num reflexo. A imagem devolvia-lhe a estranha sensação que sentia ao
usar o avental. Sempre que cozinhava gostava de vesti-lo, não pelo medo de se enodoar,
mas porque fazia parte do cenário. Porém, a cena há muito que não estava
completa: aquela mulher do reflexo sentia um frio gélido nas costas. Fazia-lhe
falta que o seu homem chegasse nessa hora, que a envolvesse, afagasse os
cabelos e lhe acalmasse a mão enérgica dizendo-lhe, carinhosamente, quer que seja eu a fazer isso? E ela
responderia que não. Era ela a bater esses ovos para ele, num acto de absoluta
gratuitidade, e isso levou-a a pensar, não sabia bem porquê, que muitas
mulheres, muito antes de amarem os seus homens, amam-se a si próprias. Que
triste. Amam tudo o que idealizaram vir a ser um dia, onde o fundamental é sentirem-se
tão queridas e desejadas, como indispensáveis. Amam o cabelo pintado de loiro
com madeixas perfeitas, a manicure, as meias de vidro, o casquinho de caxemira,
o sorriso estático; as revistas de decoração e a decoração da sala onde o
marido está sentado a fumar cachimbo, quase que amam tanto o cheiro do cachimbo
como o cheiro do bolo acabado de sair do forno; o jantar a horas certas, a
lista das compras; as férias de Natal na aldeia, as férias do verão na praia e
a merendeira que o homem carrega feliz pelo areal com o farnel do dia. Elas bem
disfarçam, mas a verdade é que, condensando tudo isto, amam-se a si próprias de
avental, sozinhas, no reflexo. Que triste. Os aventais de cozinha só tapam as
mulheres à frente, porque atrás espera-se um homem que as envolva.
Pôs a mesa. Um prato e os
talheres pousados num individual; um guardanapo e um copo; em cima do
guardanapo, uma flor. Deixou-lhe a omelete no microondas já com a tampa de
plástico por cima para não salpicar (ele esquecia-se sempre da tampa de
plástico).
Antes de sair da cozinha, colou
um post-it amarelo na porta do microondas onde ia escrever o mesmo de sempre: querido, tem aqui dentro o jantar feito, é
só aquecer. Mas uma voz surgiu na
sua cabeça, uma voz insinuante que a fez escrever: se a solidão fosse uma casca de ovo que tu pudesses partir, o meu
coração batia mais livre. No instante seguinte, ao pousar a caneta,
sentiu-se traída. Amachucou o pequeno papel amarelo e atirou-o para o lixo.
Podia ter muitos defeitos, mas sempre fora uma mulher prudente.
Por isso e porque já era tarde,
meteu-se na cama e, em poucos minutos, adormeceu.
2 comentários:
Oh kikinha, tão bonito!!!!!!
Adoro adoro adoro!!!!
:)
Enviar um comentário