quarta-feira, 26 de julho de 2017

Açorianidade

A "Açorianidade" é mais do que um conceito social, mas também é mais do que o sentimento, somente Nemésio para conseguir descrever aquilo que é básicos em nós açorianos:

______




«Não sei se chego a tempo com a minha colaboração para a Insula no V centenário do descobrimento dos Açores. É uma colaboração estritamente sentimental, uma espécie de minuto de recolhimento em meia dúzia de linhas.

Entendo que uma comemoração deste vulto deve ser, mesmo quanto a palavras, rigorosamente monumental, feita de estudos e reflexões que ajudem a consciência açoriana a tomar conta de si mesma e contribuam para que os Açores, como corpo autónomo de terras portuguesas (um autêntico viveiro de lusitanidade quatrocen­tista), entrem numa fase de actividade renovada, de re­construção, de esforço humano e cívico. E neste mo­mento, é-me impossível dar a mínima contribuição nesse sentido.

Quisera poder enfeixar nesta página emotiva o essencial da minha consciência de ilhéu. Em primeiro lugar o apego à terra, este amor elementar que não conhece razões, mas impulsos; – e logo o sentimento de uma he­rança étnica que se relaciona intimamente com a grandeza do mar.

Um espírito nada tradicionalista, mas humaníssimo nas suas contradições com um temperamento e uma forma literária cépticos, – o basco espanhol Baroja, – escre­veu um livro chamado Juventud, Egolatria: «O ter nascido junto do mar agrada-me, parece-me como um augúrio de liberdade e de câmbio». Escreveu a verdade. E muito mais quando se nasce mais do que junto ao mar, no próprio seio e infinitude do mar, como as medusas e os peixes. Era este orgulho feito de singularidade e solidão que levava Antero a chamar aos portugueses da metrópole os seus «quási patrícios».

Uma espécie de embriaguez do isolamento impregna a alma e os actos de todo o ilhéu, estrutura-lhe o espírito e procura uma fórmula quase religiosa de convívio com quem não teve a fortuna de nascer, como o logos, na água. Daqui partiria o fio das reflexões que me agradaria desenvolver.

Meio milénio de existência sobre tufos vulcânicos, por baixo de nuvens que são asas e de bicharocos que são nuvens, é já uma carga respeitável de tempo, – e o tempo é espírito em fiéri. Mais outro tanto, e apenas trocaremos metade da memorialidade de Vergílio.

Somos portanto, gente nova. Mas a vida açoriana não data espiritualmente da colonização das ilhas: antes se projecta num passado telúrico que os geólogos redu­zirão a tempo, se quiserem... Como homens, estamos sol­dados historicamente ao povo de onde viemos e enraizados pelo habitat a uns montes de lava que soltam da própria entranha uma substância que nos penetra. A geografia, para nós, vale outro tanto como a história, e não é debalde que as nossas recordações escritas inserem uns cinquenta por cento de relatos de sismos e enchentes. Como as se­reias temos uma dupla natureza: somos de carne e pedra. Os nossos ossos mergulham no mar.

Mas este simbolismo está muito longe de aludir com clareza aos segredos do ser açoriano, e mais parece um entretenimento literário do que um sério propósito de pôr o problema da nossa alma. Um dia, se me puder fechar nas minhas quatro paredes da Terceira, sem obrigações para com o mundo e com a vida civil já cumprida, tentarei um ensaio sobre a minha açorianidade subjacente que o desterro afina e exacerba. Antes desse dia de libertação íntima mal poderei fazer-me entender dos outros. Um aceno de ternura, um vago protesto de solidariedade insu­lar a distância é o muito que estas linhas podem significar."»


Vitorino Nemésio, 
Coimbra (Cruz de Celas), 19 de Julho de 1932

Sem comentários: