Porque a dor faz sempre sentido
Fui parar ao hospital com uma
crise de asma aguda ou grave, não sei o termo certo. A sensação de não
conseguir respirar, de exaustão, de não conseguir continuar tinha acompanhado
todo o meu dia e foi horrível. Passei um dia e uma noite assim.
Quando entrei no hospital mal
conseguia falar. Frequentemente, chorava porque me lembrava da minha mãe que
viveu toda a vida, desde que me lembro, neste sofrimento, em permanência.
Agarrada a bombas, a medicamentos, a reações alérgicas.
Tantas vezes, “ralhei” com ela
porque estava super ansiosa, ou mal-humorada. Agora, vejo que, com aquele mal-estar,
seria muito difícil estar de outro modo. Como ser simpática e afável quando se
está sempre a lutar por respirar?
Num dos dias do meu internamento,
algo aconteceu. Chorei muito e depois decidi escrever. Na altura, escrevi isto.
Hoje, a “minha mãe” morreu outra
vez. Desta vez, mesmo à minha frente. Fui internada no serviço de pneumologia e
fui colocada numa cama mesmo em frente a uma senhora muito parecida com a minha
mãe. Uma senhora que, enquanto eu vi, esteve sempre a sofrer muito. Uma grande
falta de ar, uma enorme máscara que mal lhe deixava ver o rosto e gemidos de
socorro constantes.
Há dez minutos, morreu à minha
frente. Estavam a dar-lhe sopa por uma seringa e ela, desta vez, não recuperou
os níveis de oxigénio. A cabeça tombou. Tubos. Máquinas. Enfermeiros. Morreu.
E eu fui colocada aqui, em frente
a esta senhora. Com nome de Nossa Senhora. Eu vi o seu sofrimento e assisti à
sua morte mesmo à minha frente.
Deus envia-nos umas lições
tremendas. O sofrimento é uma escola. Com tantas camas, eu estive 24 horas em
frente à minha “mãe” a vê-la sofrer, a vê-la morrer. Estou a tentar perceber o
que Deus me quer dizer com tudo isto. Talvez Deus queira que eu saia de mim.
A minha mãe foi a mãe que eu
precisava. Sem grandes mimos, nem palavrinhas quentes, mas foi a mãe que eu
precisei, que me fez, que me fez crescer. Eu é que talvez não tenha sabido ser
a filha que ela precisava. Mesmo assim soube amar-me muito.
Hoje, a “minha mãe” morreu pela
segunda vez. Morreu aqui à minha frente. Ainda me pediu ajuda algumas vezes,
mas de nada lhe pude valer a não ser carregar na campainha para vir alguém em
seu socorro.
Recordo que naquele dia, de
manhã, as enfermeiras a tinham limpo com todo detalhe. Eu pensara que não devia
estar a olhar porque a senhora tinha direito à sua privacidade naquele momento,
mas não consegui desviar o olhar e vi todo aquele pormenor, a limpeza do rosto,
um pouco de creme para hidratar, a água morna no pescoço e no peito. Tudo. Não
sei bem porquê, mas algo me dizia que devia ver tudo aquilo com atenção e no
máximo silêncio. Poucas horas depois, tudo aconteceu.
Paz à sua alma. Paz na minha
alma.
Porque a dor faz alguma coisa
fazer sentido.
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