há
poucas pessoas a perceber a história dos horários de trabalho. eu comecei por
ser uma dessas, sem limites no tempo de dedicação à profissão. tudo, e leia-se
mesmo tudo, justificava as horas extra, o trabalho aos fins-de-semana, o adeus
à família em prol de um ficheiro excel, o sorriso rasgado à porteira do
escritório, quando tudo o resto se desmoronava fora daquelas quatro paredes.
lembro-me de receber o telefonema com a notícia da minha avó-querida-Teresa ter
morrido, cairem-me umas quantas lágrimas enquanto continuava o teste de auditoria que
estava a fazer, secar o que restava e continuar. o importante era não parar.
estava a 200km de distância de casa e voltar não me parecia sequer solução. não
tinha carro, não tinha tempo, não tinha.. coração. e como existem pessoas que
nos trazem os pés de volta à terra, como era o caso da minha chefe nessa altura, voltei à força de boleia e fiquei três dias
em casa. foram dos três dias mais importantes que vivi até hoje. estar com a
mãe e despedir-me da avó, estar com primos e relembrarmos os bons tempos
passados em Sintra, com a avó-querida-Teresa a comprar o gelado das três cores
da marca barata do Mini Preço, a beber chá
todas as tardes, a dizer tudo sem filtro e com uma Graça superior à média das
avós-queridas. e lembro-me de deixar à minha
espera durante três horas que pareceram séculos, as pessoas que me eram mais
próximas, tudo porque afinal tinha aparecido um pedido mais importante para
fazer. mais importante do que quê? foi isto que vi toda a vida, foi
isto que quis ser desde sempre. uma mulher de
negócios, sem tempo para nada, a atender mil e duzentas chamadas em três
minutos. show!
mas
a vida mostra-nos, através de quem é diferente e nos
descalça, que aquilo que a sociedade classifica de uhuh, muitas vezes é
tão simplesmente a forma mais fácil de chegar ao limite,
ao limite inferior da resistência humana. não é tanto o problema da vida
nos ocupar 300% do nosso tempo, é a forma como esses
300% serão um dia espremidos em utilidade, amor aos outros e marca real na vida de terceiros. comecei a tentar sair da
redoma onde me meti, para poder analisar o impacto que viver assim tinha na vida das pessoas à minha volta. quis avaliar os seus
graus de felicidade, medir os seus níveis de libertação. e as conclusões foram
extremas: quem escolhe viver dedicado totalmente à profissão, principalmente as
mulheres, consegue tão somente acrescentar 7kgs de infelicidade por cada ano de vida.
quando
conheci o B, andava com um horário de comover sardinhas: eram seis e meia e
estava a pôr um pé no elevador a caminho de casa, eram sete e pouco e estávamos
juntos na Missa, eram oito e pouco e estávamos a ir jantar e namorar, eram onze
e muito e estava a deitar-me. depois tinha o dia das amigas, o dia da família,
o dia de ir beber um copo à tarde: havia dias para tudo, viver tudo e fazer
tudo. passado pouco tempo, cinco semanas
parece-me, as coisas voltaram ao “normal”: saídas às oito da noite, às
nove e às dez. as nossas conversas passaram a
ser tidas à meia noite, quando o metro me deixava em casa para mergulhar
diretamente na cama. os tempos de qualidade reduziram-se a um terço e os
almoços à semana caíram no grupo das
raridades. o conteúdo dessas conversas passou a ser baseado nos horários de
trabalho e no dificíl que seria um dia, quando fossemos família. comecei, pouco
a pouco e com toda a paciência dele, a mudar a maneira de olhar para a forma
certa de dedicação profissional. comecei, pouco a pouco e com todo o amor dele,
a mudar os meus projetos para o futuro. arrumei a ideia da mulher-de-negócios no baú das
recordações para, um dia, mostrar às minhas filhas aquilo que eu não me
orgulharia que elas viessem a ser. comecei a ser, verdadeiramente,
normal.
estou agora com um horário de 9h-00h. consegui
chegar ao pico daquilo que a sociedade classificaria com uma mulher útil. mas agora, vivo tudo isto com uma paz interior boa, mas boa. porque
agora sei o que não quero. e sei por onde quero subir os próximos sete
degraus positivos. só me falta encontrar o primeiro :)