até que chega o dia, não sabemos quando nem como, em que acabamos de existir. Deixamos por cá o que foi nosso: os livros, as roupas, a bimby, a caneta preferida, os brincos da tetra-avó que tivemos tanto medo de perder… tudo o que tivemos fica por cá e só levamos o que fomos.
Ora no
que diz respeito a pertences terrenos, o Sr. Mota tinha muitas coisas e,
aparentemente também tinha saúde para dar e para vender até ao dia em que
decidiu ir à farmácia e medir a tensão arterial. Nesse dia, veio à consulta muito
angustiado com os resultados.
Sr. Mota, tem cuidado com a sua alimentação?
– perguntei-lhe.
Doutora: impecável. São hortaliças e grelhados. Zero doces. Nem tempero
a alface. Sempre sopa. Zero gorduras. Pão integral. Tudo sem sal. Fiambre de
perú. Meia peça de fruta. Meia batata cozida. Meia colher de arroz.
E eu, meia abananada, jamais lhe poderia dizer, mas pensei que também nós
vamos acabar por deixar por cá a nossa saúde: os rins maravilhosos porque toda
a vida bebemos muita água; a coluna alinhada porque toda a vida endireitamos as
costas; os pulmões perfeitamente arejados porque, por amor à vida, deixamos de
fumar. Enfim, coisas que um médico deve evitar pensar para não se frustrar.
E porque nem só de batatas vive o
homem: e álcool, bebe?
Não doutora, bebo muita água. Duas vezes ao dia, a seguir às refeições,
ponho um bocadinho de uísque num copo e depois encho o resto com água. Doutora,
água faz bem, não faz?
Acenei que sim com a cabeça, fiz
o ar mais sério que consegui e ficámos conversados. Passamos então à parte da
observação que, para além de permitir conhecer muitas coisas do estado geral do
doente, também é um excelente instrumento de mimo: medir a tensão é como se
fosse um beijinho, auscultar o coração e os pulmões é quase igual a dar-lhes um
abraço. E enquanto se mima vão-se deixando cair as perguntas mais difíceis:
Então e o Sr. Mota teve uma boa infância? Considera
ter tido uma boa relação com os seus pais?
Doutora, muito boa! Eramos muito unidos. Até
já comprei uma campa em frente à deles ali no Cemitério de Benfica para
ficarmos juntos para sempre.
É que a
história é sempre a mesma: durante um tempo existimos, mas depois há um dia,
não sabemos quando nem como, em que deixamos se existir. Tem toda a razão
quando diz que é para sempre, mas o que é que é para sempre, que parte de nós verdadeiramente
nunca acaba? Que tesouros devemos acumular nesta vida, entre rins, bimbys e afins? A que é que temos que aspirar
para além do metro quadrado no Cemitério de Benfica?
Sr. Mota: um lugar
debaixo da terra ou um lugar no alto dos Céus?
2 comentários:
Que sorte têm estes doentes de ter uma médica assim. Eu também quero. Posso ir para a lista de espera ou faço o quê?
Esta médica é muita mariquinhas. Mas no outro dia, depois da nossa conversa, disse 'aquilo' à minha professora. Sabe o que é que ela fez? Disse 'sim filha, não te preocupes, eu respeito' e ofereceu-me uma peça da Vista Alegre para o meu enxoval :)
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