[É tão bom ler o Sebastião Bugalho, mas desta vez foi bem melhor!!!!]
Uma ode à minha terra | Crónica de viagem: Açores | Jornal i
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ilha das Flores |
Entre as ilhas, descolei e aterrei no cockpit. Um dos copilotos viu-me murmurar uma prece antes de levantarmos voo e perguntou-me:
- Não sabes que a probabilidade de teres um acidente de carro é muito maior que a de teres um acidente aqui?
- Ah, mas eu também rezo antes de viajar de carro -, respondi.
O comandante, um tipo baixinho e bem--disposto, riu-se e contou-me que também era católico, que se tinha convertido tarde.
- Acreditas que só tive a certeza quando olhei para a terra daqui de cima? Tinha de haver qualquer coisa maior para fazer isto tão bonito.
Achei que o padre Jacques Hamel, assassinado esta semana em França enquanto celebrava a missa, teria gostado de ouvir isto. Por mais que se tente laicizar o Ocidente, ocultando a culpa islâmica e o luto cristão, ainda há dois gajos que se podem cruzar a 15 mil pés de altitude e, por acaso, conversar sobre a fé.
Um miúdo que também vinha no cockpit perguntou se as nuvens existiam por Deus fumar muito, e lá nos rimos todos.
Eu perguntei ao comandante se conhecia a ode do William Butler Yeats aos aviadores irlandeses. “I know that I shall meet my fate/ Somewhere among the clouds above;/ Those that I fight I do not hate/ Those that I guard I do not love”.
Coincidentemente, a minha fé também tinha uma causa voadora.
Lembrei-me do meu avô, que era piloto e gostava do Yeats. Que me converti depois de ele voar lá acima uma última vez.
Depois cheguei aos Açores e toda a gente que me avisou tinha razão. É lindo.
Uma velhinha da minha aldeia costuma dizer que não se escolhe país nem família; só amigos e destinos.
Os Açores dão-nos um sentimento misto em que mudamos de mundo dentro do nosso próprio país. Têm as montanhas em neblina da Escócia, o pôr-do- -sol à beira-mar de Veneza e as fajãs que fazem lembrar Bali. São realmente únicos. Cada ilha, cada praia, cada miradouro. Não admira que Júlio Verne tenha escolhido o arquipélago como entrada para a sua “Viagem ao Centro da Terra”. Não admiraria até que alguém se lembrasse de proclamar que, afinal, a Atlântida não se perdeu e que os portugueses sempre a tiveram sua.
Se o meu caro leitor gostar de desafios, suba o Pico, o ponto mais alto de Portugal. Não é uma montanha que se vença, mas é uma aventura possível de não se sair vencido. Nós demorámos nove horas a completar o percurso e, eventualmente, só chegámos ao nascer do sol por estar demasiado escuro para vermos quanto faltava. Faziam cinco graus ao amanhecer.
Mais importante: se o meu caro leitor vier aos Açores, traga a namorada ou a máquina fotográfica. Sem uma delas, sentir-se-á perdido e um bocadinho parvo.
É necessário - até aconselhável - entrar em processo de descompressão. Ao jantar, o pão e a manteiga não chegam logo que nos sentamos, mas temos uma vista que nos entretém como em nenhum outro sítio.
O jornal só chega depois de almoço e eu, depois de almoço, não leio. Na verdade, não lia tão poucas notícias desde que estava a caminho daquela aldeia com alguém que me faz conduzir só com uma mão por estar com a outra na dela.
Aqui não se trancam portões na rua e podemos beber vinho à beira da piscina municipal até de manhã. Aqui há restaurantes sem password na internet porque “isso não se rouba”. Aqui, os taxistas são uns porreiros. Aqui pagam-se 15 euros por uma refeição cheia de marisco e cerveja. Do queijo às sopas, é tudo bom.
Sobretudo, aqui não é só um paraíso na terra. É o paraíso da nossa terra.
À Catarina e à Inês
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