Henrique Raposo comenta o maravilhoso testemunho de Paulo Varela Gomes
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Cancro e suicídio
Paulo Varela Gomes publicou na “Granta” um texto muito cá de casa, porque fala de cancro e suicídio. É que o suicídio corre forte na minha família, cortesia da herança alentejana. No Alentejo, sobretudo no meu, entre Santiago e Odemira, o suicídio é tão natural como o vento a passar nos sobreiros, é encarado como um acontecimento da história natural e não da história humana, é visto como acto amoral da natureza e não como escolha moral do homem. É maremoto de Neptuno, e não opção do Zé. Aceita-se sem escândalo. Nos velórios oiço sempre esta frase: “temos de respeitar a escolha dele, não é verdade?”. Não, não é verdade. Há dias, numa aldeia perdida, quis entrar num restaurante mas estava fechado. Uma senhora que passava, baixa, de negro, mãos severas, avisou-me: “’tá fechado, ele matou-se. Tá vendo aquele ajuntamento além? É o funeral”. Ela proferiu estas palavras com uma naturalidade desapiedada, como se estivesse a comentar o tempo, a forma das nuvens ou o canito da vizinha. O tom da voz não se alterou, ficou plano como a planície. Era como se o senhor tivesse ido trocar uma nota na loja ao lado.
Em reacção a esta cultura, sempre fui um crítico do suicida. Até me lembro de um episódio tumultuoso na escola: num workshop de prevenção do suicídio, levantei-me no auditório para dizer que o suicida é um cobarde. Recebi uma saraivada de tomates. Saraivada merecida, diga-se. A questão não é assim tão primária. A cabeça do suicida é a morada postal de uma dor que não pode ser chutada para a baliza que vai da coragem à cobardia. E confesso que sinto uma admiração, digamos, literária pelo suicida. O seu mistério atrai-me. Contudo, aquela opinião juvenil e precipitada já continha aquilo que defendo hoje: o meu herói é aquele que fica, que resiste, que encara a derrota. Se posso respeitar um suicida em concreto, posso e devo rejeitar a cultura do suicídio que existe no Alentejo, uma cultura que vai da relativização natural até à explícita romantização, “ele foi muito homem, muito corajoso”. Até porque, como diz Paulo Varela Gomes, há no suicida um grama de prosápia, de ego que recusa o cheiro da figueira ao pôr do sol, de ego que não se deixa amparar pelos outros, de ego que se fecha num silêncio imune às palavras e gestos de quem o ama. E se há coisa que o alentejano domina é este silêncio altivo. Freud dizia que a psicanálise não funcionava com os irlandeses, porque eles não falam. Está visto que Freud nunca foi à planície.
Nesse texto abençoado, Paulo Varela Gomes conta como o cancro o conduziu até à beira do suicídio para depois o reconduzir à fé, numa espécie de montanha russa teológica. Percebo, admiro e comovo-me com o volte-face. A minha recente aproximação a Deus e as minhas tentativas de regresso à Igreja que me baptizou são também respostas à cultura de suicídio das minhas raízes, são contra-ataques, são investidas sobre aquele sussurro negro e melífluo. Varela Gomes diz que “há muita gente a rezar por mim e é com alegria que agradeço a todos”. Eu, que estou a aprender a rezar, rezarei hoje por ele e pelos meus que já cometeram ou pensam cometer suicídio. Não estão sozinhos.
Em reacção a esta cultura, sempre fui um crítico do suicida. Até me lembro de um episódio tumultuoso na escola: num workshop de prevenção do suicídio, levantei-me no auditório para dizer que o suicida é um cobarde. Recebi uma saraivada de tomates. Saraivada merecida, diga-se. A questão não é assim tão primária. A cabeça do suicida é a morada postal de uma dor que não pode ser chutada para a baliza que vai da coragem à cobardia. E confesso que sinto uma admiração, digamos, literária pelo suicida. O seu mistério atrai-me. Contudo, aquela opinião juvenil e precipitada já continha aquilo que defendo hoje: o meu herói é aquele que fica, que resiste, que encara a derrota. Se posso respeitar um suicida em concreto, posso e devo rejeitar a cultura do suicídio que existe no Alentejo, uma cultura que vai da relativização natural até à explícita romantização, “ele foi muito homem, muito corajoso”. Até porque, como diz Paulo Varela Gomes, há no suicida um grama de prosápia, de ego que recusa o cheiro da figueira ao pôr do sol, de ego que não se deixa amparar pelos outros, de ego que se fecha num silêncio imune às palavras e gestos de quem o ama. E se há coisa que o alentejano domina é este silêncio altivo. Freud dizia que a psicanálise não funcionava com os irlandeses, porque eles não falam. Está visto que Freud nunca foi à planície.
Nesse texto abençoado, Paulo Varela Gomes conta como o cancro o conduziu até à beira do suicídio para depois o reconduzir à fé, numa espécie de montanha russa teológica. Percebo, admiro e comovo-me com o volte-face. A minha recente aproximação a Deus e as minhas tentativas de regresso à Igreja que me baptizou são também respostas à cultura de suicídio das minhas raízes, são contra-ataques, são investidas sobre aquele sussurro negro e melífluo. Varela Gomes diz que “há muita gente a rezar por mim e é com alegria que agradeço a todos”. Eu, que estou a aprender a rezar, rezarei hoje por ele e pelos meus que já cometeram ou pensam cometer suicídio. Não estão sozinhos.
Henrique Raposo
Crónica Expresso, 21 junho
2 comentários:
Todo este texto é muito bonito, mas o suicídio tem de ser incarado como uma consequências de uma doença, normalmente psiquiátrica. Não se tratam de cobardes que escolhem morrer (tal como afirma o texto) mas já a parte de serem herois os que ficam é discutível. Claro que há casos de pessoas com uma força de vontade inacreditável que se agarram ou a Deus ou à família, ou seja o que for, mas sejamos realistas, a maioria das pessoas no qual o suicídio é evitado, é à custa de fármacos e tratamentos de choque.
Um texto bom, mas com tópicos por explorar.
O Alentejo é muito bonito.
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