- Conta-me a história do homem que falava baixinho.
Havia um homem que pedia esmola
no meu caminho para o trabalho. Mas este não é o homem que falava baixinho. Esta
é outra história. Nesta história o homem não fala. No início pensava-o como
penso uma das árvores ou um dos passarinhos: ele preenchia o cenário do percurso
que faço todos os dias e do qual, me julguei senhora. Sei quantos minutos
demoro a percorrê-lo, o que vejo, do que é que tenho que me desviar e com quem
me cruzo. No início pensei que aquele caminho era meu. Lá ia eu e, às tantas, lá
estava ele: o homem que pedia esmola no caminho.
Hoje não o vi e todo o dia imerso
numa pergunta imersa num imenso nevoeiro: “onde estará?”. Afinal o homem não
vive em mim. Agora tomei consciência que ele terá o seu caminho. Aquilo
chocou-me, de certa forma e fez-me diferente. Que egoísmo. Agora vou no meu
caminho e penso outras coisas: olho mais para o lado onde as pessoas vão no
caminho delas, faz-me falta o homem que pedia esmola – será que encontrou o
seu?
Agora mudo muitas vezes de
percurso porque sou eu que escolho. Às vezes, escolho perder-me por aí.
Cruzar-me noutros caminhos. Faz-me falta o homem que pedia esmola e queria
dar-lhe o meu tempo como à copa das árvores. Ele tinha a tez escura e nunca
soube se ri ou se chora – fazia um ar estrangeiro do qual eu desviava o meu
olhar. Onde estará? O homem que pedia esmola é aquele sorriso estranho, nunca
lhe vi os pés, será que tem pés? Nunca vi os troncos das árvores do alto da
janela do meu quarto, mas elas não são só a copa.
- Conta-me a história do homem que falava baixinho.
São vinte doentes pela manhã. Um
entra-e-sai de gente carente que transporta os corpos e as almas. Diziam-me
assim quando entrei para a faculdade: “o médico deve observar o doente desde
que ele põe o primeiro pé dentro do consultório até que tira o último pois tudo
nos fala da sua doença, com tudo comunica, de tudo podemos tirar informação”.
Queria atirar as folhas, os registos, as análises pela janela para que se perdesse
no vale, no meio das árvores e dos pinheiros, e assim olhar os doentes da raiz
até à copa.
- Conta-me a história do homem que falava baixinho.
A Dona Lurdes chora. Atrás do
balcão onde atende os clientes famintos, chora. Quando lhe reclamo o porquê
daquele ar triste, sem nunca deixar de fazer o que devia. No mesmo minuto em
que chorou aqueceu um prato, tirou dois cafés, lavou umas malgas, só não cruzou
mais o olhar comigo. Devia ter transposto o balcão e agarrá-la num abraço
meigo. Devia ter saído do carro e olhado os pés do homem que pedia esmola. Eu queria
ter beijado aqueles pés que por não terem destino certo, só têm o destino final
que é o mesmo que o meu. Mas agora ele já não está. Seguiu o seu caminho. Agora
a Dona Lurdes já não chora.
- Conta-me a história do homem que falava baixinho.
Na verdade, pouco lhe interessava
se os outros ouviam ou não. Era só isso: um homem que falava baixo. Pouco lhe
interessava os papéis dos registos, das análises, a próxima consulta, mais ou
menos colesterol... Conversa.
Entrei no jogo: calei-me e
observei-o completamente, lentamente, sem sorrisos forçados ou olhares
constrangedores. Durante uns segundos, falamos a mesma língua e fui muito feliz.
Era só isto que te queria tanto contar... Que durante uns segundos, foi ele o
médico e eu a doente moribunda, de bata e estetoscópio ao peito. E assim devia
ser, todos os dias da minha vida.
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