e tenho que fazer um relatório
final. Trata-se, basicamente, de resumir em oito páginas, com tipo de letra
arial, tamanho doze, espaçamento dois, o percurso que fiz durante estes últimos
anos. Passo os olhos pelos relatórios de colegas de anos passados em busca de
alguma inspiração para esta árdua tarefa. E o que vejo é tão imenso quanto
minucioso, tão rigoroso quando poético, tão adulador quanto inspirador que só
me apetece escrever assim:
‘No dia dez de maio do ano de
dois mil e treze, às doze horas e quarenta e dois minutos, ao décimo terceiro
dia do meu estágio de pediatria no hospital dona estefânia, fui ao bar e pedi
uma sandes de leitão. Apesar de se encontrar ligeiramente gordurosa e de lhe
faltar uma folhinha de alface, esta situação foi colmatada pelo facto de ter
sido prontamente atendida por uma senhora extremamente simpática que proferiu
um rol de palavras agradáveis que passarei a citar tal e qual foram verbalizadas
uma vez que, como boa estagiária, as registei cuidadosamente no meu caderno:
Posto isto, encaminhei-me para uma mesa e sentei-me de fronte da televisão onde passava um programa sobre o tigre da sibéria. Do programa em questão, recordo-me apenas vagamente porque a verdade é que, nesse momento, eu já estava de tal forma alheada na envolvência da contemplação do sucedido que, à terceira dentada, não consegui conter a emoção e derramei lágrimas no pires da sandes, ensopando todo o guardanapo de papel que o cobria. O que tinha significado todo aquele episódio afinal? Uma ida à cafetaria que me parecia aterradoramente simples, rotineira e monótona revestia-se agora de um significado imenso: a sandes gordurosa era para mim a imagem do doente enfermo; a senhora da cafetaria era a lembrança da vertente humanista que nunca deveria descurar na minha prática médica. E eu: a doutora kika. Nada mais que uma simples jovem médica comendo a sua sandes de leitão! Não consigo exprimir, dentro do limite de páginas deste relatório, o significado deste episódio bem como todos os sentimentos que ele me causou. Neste momento as recordações a traduzirem-se por palavras, linha após linha, são tão intensas que não chega a fazer sentido escrevê-las com letra doze e espaçamento dois. Tudo isto deveria estar apertadinho, apertadinho…, como ficou o meu coração…! Porém, confesso que me ajuda escrevê-las a tipo de letra arial, uma vez que esta é uma letra fria e impessoal. Neste ponto, não posso deixar de louvar a alma perspicaz que se decidiu por este estilo de formatação. A letra arial, ajuda a distanciar-me dos acontecimentos, a respirar fundo e a manter a calma; ajuda-me a consolidar parte dos conhecimentos que adquiri ao fim de seis anos de licenciatura: a transferência e a contra-transferência na relação médico-doente. Que deve ser garantido um distanciamento terapêutico sem nos deixarmos de envolver. Sobre isto que estudei tão bem (porque o meu percurso académico foi pautado pela organização e eficácia) podia escrever cem páginas, mas de tanto estudá-las também aprendi a resumi-las numa palavra. E a palavra é só uma: amor.’
1. Bom dia doutora.
2. O que vai ser hoje?
3. Lurdes, sai sandocha de leitão
4. Quer que corte ao meio?
5. É para levar ou comer já?
6. São dois euros, por favor
7. Paga na caixa, está bem?
8. Próximo!
Posto isto, encaminhei-me para uma mesa e sentei-me de fronte da televisão onde passava um programa sobre o tigre da sibéria. Do programa em questão, recordo-me apenas vagamente porque a verdade é que, nesse momento, eu já estava de tal forma alheada na envolvência da contemplação do sucedido que, à terceira dentada, não consegui conter a emoção e derramei lágrimas no pires da sandes, ensopando todo o guardanapo de papel que o cobria. O que tinha significado todo aquele episódio afinal? Uma ida à cafetaria que me parecia aterradoramente simples, rotineira e monótona revestia-se agora de um significado imenso: a sandes gordurosa era para mim a imagem do doente enfermo; a senhora da cafetaria era a lembrança da vertente humanista que nunca deveria descurar na minha prática médica. E eu: a doutora kika. Nada mais que uma simples jovem médica comendo a sua sandes de leitão! Não consigo exprimir, dentro do limite de páginas deste relatório, o significado deste episódio bem como todos os sentimentos que ele me causou. Neste momento as recordações a traduzirem-se por palavras, linha após linha, são tão intensas que não chega a fazer sentido escrevê-las com letra doze e espaçamento dois. Tudo isto deveria estar apertadinho, apertadinho…, como ficou o meu coração…! Porém, confesso que me ajuda escrevê-las a tipo de letra arial, uma vez que esta é uma letra fria e impessoal. Neste ponto, não posso deixar de louvar a alma perspicaz que se decidiu por este estilo de formatação. A letra arial, ajuda a distanciar-me dos acontecimentos, a respirar fundo e a manter a calma; ajuda-me a consolidar parte dos conhecimentos que adquiri ao fim de seis anos de licenciatura: a transferência e a contra-transferência na relação médico-doente. Que deve ser garantido um distanciamento terapêutico sem nos deixarmos de envolver. Sobre isto que estudei tão bem (porque o meu percurso académico foi pautado pela organização e eficácia) podia escrever cem páginas, mas de tanto estudá-las também aprendi a resumi-las numa palavra. E a palavra é só uma: amor.’
Desculpem-me tanto disparate. Não se
preocupem. Não escrevi nada disto, nunca tive visões deste calibre nem, tampouco,
me lembro de alguma vez comer uma sandes de leitão na vida.
A única coisa real é que, finalmente, acabei este curso interminável. E isso é mesmo muito bom.