Vou a descer a rua e penso tantas vezes nisso. Parece que está tudo mal porque
nada daquilo é suposto. Que é
como se fosse tudo estranhamente desadequado, ligeiramente amargo e que, por
mais borboletas que adornem as paredes, por mais enfeites nos bolso
das batas, por mais palhaços a deambular pelos corredores… não me enganam: tudo
isso é para nos distrair a nós, adultos. Porque aqueles miúdos simplesmente não
deviam estar ali.
Não é suposto… um hospital
pediátrico.
Vai-me desculpar, eu sei que para
além de ser cliché ainda deve estar a
pensar qualquer coisa como: “ai filha, venho eu para aqui ler coisas agradáveis
e agora resolve-me dizer que descobriu hoje como sofrem as criancinhas”. Caro
leitor: desculpe. Eu estive mesmo para não vir porque tem-me custado muito. Vir
aqui implica alguma imaginação, implica algum esforço da minha parte por lhe
contar coisas giras, divertidas, que descansem a sua cabeça. Mas é que ultimamente
ando por ali a ver borboletas a mais nas paredes. Ou simplesmente vagueio por
ali (sim é isso, parece que vagueio). Vagueia o meu corpo, porque a cabeça
nunca esteve tão focada. E é inédito: esgoto-me na doença, no mecanismo, nos
factores de risco, nas manifestações clínicas, na fisiopatologia, na molécula, no
prognóstico, no tratamento. Em suma, em tudo, menos no miúdo. Sobra-me pouco. Sugam-me
a imaginação, as forças e saio de lá esganada de fome ou de qualquer coisa que
me parece ser fome.
Acima de tudo, tem sido perceber
o que eles acham de estar ali: a Rosa, pequenita, que entra na sala de espera
onde as luzes estão acidentalmente apagadas e pergunta à mãe: “Mamã, para onde
foram as cores?”
Ou o Filipe, no internamento, em
calções de pijama e estetoscópio ao peito, que espreita para um quarto da
enfermaria onde estamos (um bando de pseudo-médicos) a observar um doente e pergunta do
alto dos seus 4 anos: “há aqui alguém doente? É que eu sou um médico.” Afinal, que
sítio melhor para brincar aos médicos que no próprio hospital? Doutor, não se
preocupe, tudo controlado por aqui.
A Rita: “mostras-me o teu sinal
na barriga?”. “Não, porque tenho cócegas”. “Mas eu não faço cócegas, prometo”. “Nããããooooooo….!”.
E pronto.
Ou a Jacinta, que morreu ali às
22h30 do dia 20 de Fevereiro de 1920. “Se os homens soubessem o que é a
eternidade, faziam tudo para mudar de vida”.
Se os homens soubessem o que é a eternidade não tinham medo de entrar num hospital pediátrico. Não inventavam palhaços para se distrair. Nem desenhavam borboletas nos corredores (a fingir que voam, a fingir que são livres). Se o leitor e eu soubéssemos... ali, naquelas paredes, a descer a rua, em qualquer sítio.