Gosto de sentir a
chuva a bater na vidraça. O hospital é grande, a enfermaria acolhe uns
cinquenta doentes, e as janelas dão não sei bem para onde porque não tive ainda
tempo ou cuidado de o investigar.
Estas palavras não
as escrevo. Tenho as mãos comidas pela dor, os dedos não me consentem a
escrita. Grava-as o coração no sangue que me corre pelas veias sofridas. Para
que tu as oiças, meu Amor!
Porque tu ouves
aquilo que te diz o meu coração pobre de palavras.
Como sentiste o carinho que eu te
tinha, num outro dia de chuva em que o céu te mandava em água o meu protesto
calado de paixão.
No dia em que
comecei a amar-te sem o saber. Em que a chuva nos enlaçava em promessas. E o
dia cinzento esperava o nosso sorriso de eternidade. Gosto de sentir a chuva a
bater na vidraça, querida!
Porque agora só ela me traz as
palavras que me não disseste quando chovia também e nos conhecemos.
Nunca te escrevi
uma carta de amor quando nos namorámos.
Mas agora renasce o noivado que
nunca terminámos (…)
Renasce na chuva em
que me lembro de ti. Saíste hoje de ao pé de mim. Tinha acabado a hora das
visitas. Trouxeste-me bolos, café... Trouxeste-me o carinho do teu rosto que
pintaste para mim. O sorriso em que escondias a tua inquietação pela doença.
Ouve, Bli! Ouve o
meu coração pequeno a cantar-te coisas grandes. Ouve a alma pecadora que não
esquece os seus pecados e tem sempre diante dela as suas culpas. Não vou
contar-te as minhas faltas. O meu coração é de Deus, não posso desvendar-te as
suas perversidades. Só posso dizer-te que casaste com um homem fraco, um homem
capaz de trair-te como tantas vezes tem atraiçoado a Deus. Um homem que te ama
loucamente! Com o mesmo amor que dá Deus. O mesmo coração, a mesma miséria.
Ouve, meu Amor...
Agora que a noite te abraçou sozinha no leito. Agora que a doença nos afastou,
ouve, meu Amor! Pede a Deus o que quiseres. Pede-Lhe a minha cura, se for bom.
Mas, acima de tudo, dá- -Lhe graças. Por mim que tenho o corpo desfeito. Por
mim que não sou digno d’Ele, nem de ti. Por mim, porque Ele é Santo e me deu
esta alegria de sofrer. Não penses que estou louco. Eu não gosto da dor.
Se agora o médico
me receitasse um comprimido que me curasse, eu tragava-o de seguida. Não quero
a doença! Mas amo-a. Não julgues que o li nos livros de espiritualidade e te
recito fórmulas aprendidas.
Se os livros dizem
isso, eu não preciso deles para nada. Foi Deus, meu Amor, o nosso Deus que nos
uniu até à morte. Foi Ele quem me ensinou. Quando eu estava ainda em casa,
nessa cama onde não sei se dormes ou combates a insónia, quando tu dormias ao
meu lado e eu acordava cheio de dores, acredita que Lhe agradecia.
Houve dias em que a
própria alma me ardia em febre. Nem um sorriso de carinho em volta me afagava.
O teu rosto lindo estava longe. E eu pensei que se chorasse talvez houvesse
consolação. Mas as lágrimas custaram-me tanto que nem elas puderam estar
comigo. Só Deus. Os meus amores. E tu, que os envolvias a todos. Tu e a tua
lembrança que me acompanha sempre. E agora estou aqui, e tu aí. Sinto a tua
ausência. É ela o maior espinho que Deus cravou na minha alma pecadora. Os
pecados que não esqueço não me atormentam, porque Ele já os perdoou. A tua
ausência, sim! Mas a tua ausência não é tu estares aí e eu aqui. São estes
lençóis que tu não tocas. O chão à volta que tu não pisas. O ar que não me traz
o teu sorriso. Esta carne cheia de suor e dor onde não repousas o teu beijo. A
tua ausência são as mãos dos enfermeiros que não me oferecem o teu carinho. O
hospital inteiro onde tu não estás. Não é eu estar aqui e tu aí. É o ruído da
enfermaria que não acolhe a tua voz. O meu chorar em silêncio que tu não ouves.
A tua imagem linda que os meus olhos recordam e vale bem menos do que tu. (…)
Meu Amor! Se
puderes adivinhar o que te digo agora e tu não ouves, agora que a chuva enche a
noite de mistério, se quiseres estar comigo nesta hora, acolhe no teu coração
puro a minha prece de gratidão e oferece-a pelos nossos filhos a Deus. A nossa
casa está cheia do amor que nos une. Não chores a minha ausência. Não chores as
minhas dores. Se não fossem elas, de pouco valeria eu que agora as sofro. E
reza por mim, em minha vez. Eu não tenho força para falar. Outro dia, quis
rezar o Terço. Mas o corpo contorcia-se. Era já hora de jantar e eu não
conseguia comer. Quis rezar o Terço, mas nem isso as dores me consentiram. Os
outros doentes não fizeram caso. Eu torcia-me na cama. Era habitual numa
enfermaria. Ninguém ligava. Senti-me só. Quis rezar, mas não pude. Então pus a
almofada sobre a cabeça, escondi os olhos da luz que me entontecia, o crucifixo
junto aos lábios. Cobri-o de beijos e fui lembrando os meus amores.
Um beijo por cada um. E todos para Deus.
(in Miserere,
João Morais Barbosa)
4 comentários:
Nem sei o que comentar...! Um beijo para si e obrigada pela partilha.
LINDO LINDO LINDO! Dos textos mais bonitos e tristes que já li. As coisas que escreves são a melhor forma de o homenagear! Um grande beijinho amiga, Joana
Como Adorava ter conhecido este Senhor tao fantastico e criou das melhores familias que existem e que eu tenho o maior gosto em fazer parte! =)
Leonor Morais Barbosa
" o crucifixo junto aos lábios. Cobri-o de beijos e fui lembrando os meus amores. Um beijo por cada um. E todos para Deus."
Cada vez que leio este texto, descubro e aprendo coisas novas. Desta vez foi a resposta a um "porquê" que andava na minha cabeça.
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